domingo, 18 de outubro de 2020

Eu e a UEM: 30 anos de uma história vivida intensamente

Amanhã, 19 de outubro de 2020, completo exatamente 30 anos como professor efetivo da UEM, e escrevo hoje pois tenho receito de não conseguir tempo para escrever amanhã. Fui, também, é verdade, professor colaborador pelo período de 10 meses antes, em 1989, mas as três décadas como professor não-titular deve ser especialmente comemorada, afinal, nesta condição, 55,5% da minha vida está ligada diretamente à Universidade Estadual de Maringá. 
 
Posso afirmar que vivi intensamente esse período. Posso afimar que acompanhei de muito perto o crescimento da UEM, seu amadurecimento acadêmico e científico. Posso afirmar que, como bem diz o atual reitor da nossa universidade (prof. Julio Damasceno), o DNA da UEM faz parte do meu, se misturam em muitos aspectos. Inicialmente é preciso deixar bem claro: tenho muito orgulho de ser professor desta universidade! Ao longo dessas três décadas fiz muitos amigos, tive e tenho inúmeros colegas, conheci e me relaciono tranquilamente com centenas de pessoas. Claro que colhi inimizades também, mas elas são tão poucas que me tranquilizam com relação à matemática da vida, na soma, multiplicação, divisão e subtração de amizades. 

Posso afirmar tranquilamente que sempre respeitei as pessoas por pensarem diferente de mim, por fazerem e defenderem escolhas que não foram as minhas. A universidade me ensinou, praticamente de forma cotidiana, que a democracia é o valor maior que deve unir as pessoas, pois, dessa forma, e foi assim comigo, as desavenças políticas, os adversários políticos ou mesmo acadêmicos não se confundiram com inimizades pessoais, muito ao contrário; tenho, na universidade, pessoas muito queridas, com as quais sempre há portas abertas, que são minhas adversárias históricas . 

Vivi intensamente a UEM, pois participei ativamente de sua política interna: participei e coordenei campanhas para reitoria, exerci cargos de destaque na sua administração, como chefe de gabinete da reitoria e pró-reitor de ensino de graduação. O que aprendi sobre a UEM e sobre o ensino superior em geral no exercício desses cargos eu não aprenderia lindo mil livros, tendo mil aulas sobre o assunto. Mas aprendi, especialmente, a desenvolver minha sensibilidade para a complexa função que é gerir uma isntituição pública universitária, que compreende, especialmente, as relações humanas que dela fazem parte. 
 
Vivi intensamente a UEM na medida em que também exerci funções mais acadêmicas e menos políticas, como chefia de departamento e coordenação de cursos de graduação. Tais funções também me despertaram a necessidade de desenvolver a sensibilidade acadêmica, sem esquecer, é claro, toda a regulamentação que, às vezes mais às vezes menos burocrática, tem a função de regular a vida acadêmica. Vivi intensamente a UEM como conselheiro de dois de seus conselhos superiores: o Conselho Universitário e o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão. Ali, nesses espaços coletivos primordiais da vida universitária, aprendi que o diálogo é fundamental para avançarmos; ali o respeito é fundamental para que o coletivo prevaleça sobre as vontades individuais ou de grupos isolados. 
 
Mas, vivi intensamente a UEM em momentos e aspectos que sempre me deram prazer, apesar de sempre me darem muito trabalho: o ensino, a pesquisa e a orientação. Dei aulas em todos os níveis de ensino (lembro uma semana em que dei aula na graduação, na especialização, no mestrado e doutorado) e, na grande maioria das vezes, me senti realizado nesta função; dar aulas para mim sempre foi, também, momentos privilegiados de aprendizado; ano passado tive mais uma experiência gratificante: dar aulas na Unati, para pessoas da terceira idade. Minhas pesquisas, de mestrado, de doutorado e as institucionais, me oportunizaram conhecer e me aprofundar em temáticas interessantes e instigantes. Meus orientandos (ah meus orientandos!) que, em sua maioria, viraram meus queridos amigos; acompanhar o processo de amadurecimento dessas pessoas, sob meus cuidados acadêmicos, foi, e continua sendo, uma das atividades que mais trazem satisfação. Por falar nisto, um grupo em que ensino, pesquisa e orientação se cruzam é o LEIP; o nosso Laboratório de Estudos do Império Português, criado em 2008 pelo Sezinando e por mim, é o "fruto" mais significativo desta minha relação com a UEM, pois é espaço que alia ciência e carinho e respeito; obrigado Sezinando Luiz Menezes por você existir na UEM, pois com você demos vida a um grupo que sintetiza o que de melhor a vida acadêmica pode trazer. 
 
Vivi intensamente a UEM, a ponto de ficar triste, frustrado e angustiado com a sua situação de alguns anos prá cá. O projeto de enfraquecimento e desmantalemanto das Instituições de Ensino Superior no Parará é algo concreto, que coloca em risco a própria identidade da nossa universidade em Maringá. A falta de concursos e, por consequência, de contratação de professores efetivos está colocando em risco o que de mais precioso a UEM produziu: seus cursos de pós-graduação em mestrado e, especialmente, doutorado. A UEM cresceu e se consolidou muito em função de resistir às investidas de governos que somente no discurso tinham a educação como uma de suas porioridades. Para a ciência em Maringá, Paraná, Brasil e no mundo, é realmente uma pena o que estamos presenciando. 

Finalmente, quero hoje agradecer a todas minhas alunas, todos meus alunos, minhas colegas e meus colegas de trabalho em todos os lugares nos quais trabalhei e trabalho, minhas orientandas e meus orientandos que tive ao longo destes 30 anos, agradeço especialmente minhas amigas e meus amigos que, para além das interações acadêmicas, contribuiram para que minha vida na UEM tivesse realmente valido a pena!! Obrigado UEM por tudo me trouxe! Obrigado UEM por ter contruído, e muito, para o que sou hoje! 
 
PS: obviamente que deixei de falar um monte de coisas neste espaço, mas o que aqui está escrito sintetiza, resume, uma vida na UEM, uma história vivida intensamente...

domingo, 17 de maio de 2020

Loteria macabra em tempos de pandemia.


Hoje eu quero escrever sobre o comportamento de parte da população brasileira durante a pandemia que estamos vivenciando. Mais especificamente, o sair de casa sem necessidade e o não usar máscara quando sair de casa por necessidade. As pessoas que fazem isto (e não são poucas...) estão, consciente ou inconscientemente, apostando em uma loteria mórbida, loteria macabra.

Os dados oficias da expansão do Covid19 apontam que, no Brasil, as coisas ainda vão piorar. Infelizmente, estamos longe de nos sentirmos seguros por enquanto. Ao fazer uma busca na internet, sem critérios rigorosos, é verdade, mas apenas para levantar algumas estatísticas e probabilidades, foi possível ver que propagação em território brasileiro do vírus pode atingir até cem milhões de pessoas; a grande maioria, é verdade, de forma assintomática, em que talvez não venham a saber que foram infectadas, pois não serão testadas. O problema é que as pessoas que poderão desenvolver a doença podem chegar à cifra de um milhão. E o problema maior ainda é que, se a taxa de mortalidade continuar como está hoje (em torno de 6,5%), poderemos ter 65 mil mortos pelo corona. Alguns prognósticos mais negativos (ou realistas) apontam que a tendência é que o Brasil ultrapasse os Estados Unidos em número de mortes, ou seja, mais de cem mil pessoas perderão a vida. Se pegarmos, por exemplo, a disseminação da doença por dia numa comparação entre o mundo, os Estados e Brasil, temos que no trigésimo dia a partir da primeira morte (10/02 no mundo, 05/03 nos Estados Unidos, 16/04 no Brasil), no mundo tínhamos 40.484 casos e 910 mortes, nos Estados Unidos 175 casos e 11 mortes, e no Brasil 29.015 casos com 1.760 mortes. Se pularmos para o quinquagésimo novo dia (10/03 no mundo, 03/04 nos Estados Unidos, 15/05 no Brasil) , o mundo tinha 113.702 casos e 4012 mortes, os Estados Unidos 245.175 casos e 6.059 mortes, e o Brasil com 204.795 casos com 14.058 mortes. Ou seja, se a tendência continuar o crescimento do Covid19 no Brasil será maior do que entre os norteamericanos. Abaixo apresento um quadro mais didático destas informações. Para situar o leitor, hoje estamos no dia 127 no mundo, 103 no mundo e 61 no Brasil.

Bem, numa população de pouco mais de 200 milhões de pessoas, as estatísticas projetadas para o Brasil realmente não significam, enquanto estatística somente é bom frisar, muita coisa. Se arredondarmos os números, as mortes representarão 0,1% da população. Ora, talvez isto esteja na base das razões pelas quais parte dos brasileiros é tão descuidada com a propagação do vírus. E aí é que está, na minha visão, o problema: brasileiros jogam com a maior probabilidade de não morrerem pelo corona vírus. É uma loteria que as pessoas estão apostando, não dinheiro, mas a vida. O vírus, como sabemos, é, digamos, democrático, pois não escolhe cor, religião, gênero ou classe social, e, portanto, sair de casa sem necessidade ou sair sem máscara quando necessário é, sim, apostar numa loteria macabra, em que se está jogando com a própria vida ou com a vida de familiares, amigos e colegas. A máscara é para proteger especialmente os outros, pois como não temos, e nem vamos ter, testes para todas as pessoas, existe sim uma possibilidade real de que pessoas tenham sido infectadas e que estão sem sintomas, mas que podem contagiar outras pessoas, as quais podem desenvolver a doença e virem a falecer. Até quando brasileiros em parques, lugares públicos, bares, ruas etc., vão continuar apostando na morte??? E mais, como sabemos, o uso da máscara, quando necessário sair de casa, pode contribuir, e muito, com a diminuição dos número de casos e, especialmente, mortes.

Me propus, quando pensei neste texto, não fazer críticas ao Bolsonaro, mas, sinceramente, é impossível não pensar neste verdadeiro crápula quando penso na loteria macabra que muitos brasileiros estão vivendo. Ele, como mandatário maior no Brasil, é o grande agente desta casa de apostas, desta lotérica que tem seu resultado publicado diariamente. Por causa do incentivo que ele faz às aglomerações das pessoas, os resultados diários da loteria macabra terão muito mais ganhadores (ou perdedores, na verdade) por dia e, no final, quando a casa de apostas fechar com o fim da pandemia, ele poderá fazer as contas do lucro absurdo que ela renderá: a morte de dezenas de milhares de brasileiros.

Vamos sair de máscara pessoal!! Mas, não levar a máscara para passear na mão, no bolso, na orelha, no pescoço, mas usar de modo correto!! Esta atitude, com toda a certeza, salvará vidas!!!








sexta-feira, 10 de abril de 2020

Por que Bolsonaro foi eleito presidente?


Faz algum tempo que pensava em escrever uma série de posts dando a minha opinião acerca das razões que levaram o Brasil a eleger Jair Messias Bolsonaro como seu presidente. Resolvi escrever porque julgo que esta pergunta não foi respondida a contento ainda. Claro que isto pode ser arrogância de minha parte, e aceito tal juízo que por ventura me for feito, mas, acho que a resposta a esta pergunta é fundamental para sabermos como nos posicionar dentro de dois anos. Alerto, inicialmente, que tenho consciência que, ao final desta reflexão, serei criticado tanto pela direita quanto pela esquerda; posso até a vir perder amigos, mas, depois de pensar muito, concluí que não posso me calar, pois penso (ou idealizo) que eu posso contribuir nesse debate.

Pensei em, incialmente, fazer pequenos posts, do tamanho que adotei aqui no blog. No entanto, como seriam muitos sobre o mesmo assunto e, por mais que eu faria a distinção entre eles, julguei que seria melhor fazer um post apenas, por receio de possíveis confusões. O resultado é um textão (diria que é um grande textão...) e, assim, conto a paciência de meus leitores. E, como é de hábito, minhas reflexões aqui no blog não tem o rigor acadêmico; elas se caracterizam, em sua forma escrita, mais como ensaios. Feitos os alertas iniciais, vamos ao conteúdo.




1. QUEM ERA JAIR BOLSONARO

Pois bem, neste primeiro momento quero partir de quem foi Jair Bolsonaro antes de ser presidente. O que segue é muito conhecido e até óbvio, mas nada mais certeiro do que partir de certas obviedades. Às vezes (parafraseando o grande Nelson Rodrigues) o óbvio é ululante, mas nem por isso merece ser descartado. Claro que não preciso voltar ao seu nascimento. Me atenho apenas ao que julgo mais importante.

Bolsonaro entrou a Academia Militar das Agulhas Negras, que forma oficiais para o exército brasileiro e é muito concorrida. De fato, ele deveria ser muito inteligente e disciplinado para conseguir o ingresso naquela escola. Formou-se em 1977 e, logo após, ingressou na carreira. Foi de tenente a capitão até 1988, quando se aposentou. É isto, se aposentou com pouco mais de 10 anos de serviço!!! Era descrito pelos seus comandantes como tendo uma excessiva obsessão em realizar-se financeira e economicamente. Em 1986 foi preso, acusado de insubordinação, por escrever um artigo na Revista Veja sobre o baixo salário pago ao militares no Brasil. Em 1987 foi acusado de motim por liderar uma  operação chamada "Beco sem saída". Foi julgado pelo STM (Superior Tribunal Militar) e absolvido por falta de provas e, em seguida, em 1988, entrou para a reserva (se aposentou). Há a versão de que a aposentadoria foi um acordo para que pessoas de maior patente não fossem também envolvidas.

Em 1988 entrou para a vida política tendo sido eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão (PDC). Ficou dois anos no cargo, pois foi eleito deputado federal em 1990 também pelo PDC. Seu mandato como vereador é descrito como conservador, discreto e pouco participativo, em que defendeu pautas de apoio aos militares. Como deputado federal foi reeleito outras seis vezes e se filiou a oito partidos diferentes (PPR, 1993-1995; PPB, 1995-2003; PTB, 2003-2005; PFL, 2005; PP, 2005-2016; PSC, 2016-2017; e PSL, 2018-2019). De sua participação como deputado federal pode-se destacar que teve aprovadas três proposições e concorreu por três vezes ao cargo de presidente do Câmara Federal, em 2005, 2011 e 2017, sendo que na última vez teve 4 votos. Teve notoriedade por falas machistas, homofóbicas e de saudosismo do regime militar, inclusive dedicou seu voto a favor do impeachment da Dilma ao coronel Ustra, notório chefe do setor de torturas e torturador também na época da ditadura no Brasil.

Esta é uma bem sintética apresentação de sua vida. O destaque, em sua atuação política, é que nunca assumiu nenhum cargo executivo, nunca se destacou e nem ocupou (pelo que pesquisei) nenhuma posição de destaque na Câmara Federal, como algum cargo nas mesas diretoras. Foi somente membro de varias comissões permanentes e transitórias. Ou seja, ele pertenceu, sempre, ao que se chama "baixo clero" na política federal, que são deputados que, por opção ou não, sempre ficam em segundo plano no cenário político da casa e servem, muitas vezes, como massa de manobra daqueles que são do "alto clero", além do que os deputados do "baixo clero" geralmente passam despercebidos pela imprensa, podendo, inclusive, burlar certos mecanismos de controle.

Bem, a pergunta que fica, então, é: apesar da sua insignificância política, como Jair Messias Bolsonaro virou presidente do Brasil?

Na análise que segue elenquei as razões que, a meu ver, levaram Bolsonaro a ser eleito.  No entanto, as partes que vêm na sequência não significam, necessariamente, ordem de importância das causas que levaram-no à presidência.




2. O CONSERVADORISMO MORAL DO BRASILEIRO

A eleição de Bolsonaro foi marcada, como todos sabemos, pelo apoio de uma parte da população brasileira marcada por um conservadorismo moral. O discurso pautado nos valores tradicionais como família, religião, civismo etc. mostrou-se eficaz. O problema é que esse tipo de discurso traz, implícito ou explícito, o ataque àquilo que é visto como contraponto aos valores tradicionais, como a homosexualidade, o emancipação feminina, a igualdade racial etc.. 

Muita gente, me incluo nesse contigente, ficou assustado com a mobilização do conservadorismo moral radical que viu-se na eleição passada. De certa forma, uma espécie de bolha havia sido criada, originada nas universidades, nos movimentos sociais e em movimentos religiosos de cunho social, com a impressão de que a grande maioria da sociedade brasileira tinha deixado o conservadorismo de lado. Afinal, quem, em sã consciência, pensávamos nós, seria contra a emancipação da mulher e a igualdade racial, contra a liberdade de  orientação sexual, contra as políticas indigenistas?; quem, em sã consciência, continuávamos pensando, seria a favor do machismo, do racismo, da homofobia, da indiofobia? Pois é, muita gente se mostrou assim... Uma das propagandas de Bolsonaro, e vastamente difundida pela sociedade, foi a tal da "mamadeira de piroca" que, de forma inacreditável e surreal, se espraiou e fortaleceu o conservadorismo, e considero, aqui, o exemplo-síntese da campanha bolsonarista no tocante à questão moral.

Bem, o fato é que uma parte da sociedade brasileira é conservadora sim. Um país que foi, ao longo da maior parte da sua história, muito religioso, que há pouco mais de 100 anos tinha uma religião oficial e foi (ou é) considerado o pais mais católico do mundo, necessariamente tem o conservadorismo moral no seu DNA. Aborto, casamento homossexual, liberação da maconha são alguns dos tabus que seguem até hoje. Alguém pode, com razão, pensar que o conservadorismo brasileiro tem como substrato a hipocrisia, mas não acho que isto é relevante para os objetivos destes apontamentos. O que importa é que, por algum tempo, uma parte perversa do conservadorismo estava calado, escondido, mas, sempre latente. Para explicar esta afirmação é preciso deixar claro que não acho um problema as pessoas serem conservadoras, aliás, julgo como absolutamente natural no movimento da história. Se pensarmos, por exemplo, no século XX brasileiro, especialmente no campo da música, sempre houve reação de parte da sociedade (especialmente nas classes médias) ao samba, jovem guarda, rock, punk etc.. Parte da sociedade teme perder o controle que julgam ter sobre sua família, se a sociedade abrir mão de certos valores. Portanto, reafirmo que julgo muito natural o conservadorismo moral. Penso que além de natural o conservadorismo é importante para a sociedade, no sentido de que nem tudo o que se diz progressista de fato o é. 

Os principais extratos conservadores sempre são os das classes médias, pois os das altas são sempre muito mais liberais, pois não precisam ficar mantendo aparências, e as classes baixas, pela dificuldade na própria subsistência material, muitas vezes deixam de se preocupar com questões morais. É claro que afirmo isto enquanto extratos sociais e não para todas as individualidades. Assim, a "alma" conservadora do brasileiro tem seu epicentro nas classes médias, que reune pessoas que se miram nos ricos, desejando o que eles têm, e repelem os pobres, rejeitando, de fato, ou um passado ou uma possibilidade de futuro. Se pensarmos nos estados brasileiros e nas cidades mais populosas onde Bolsonaro foi mais bem votado em 2018, a maioria deles se caracteriza por terem classes médias mais numerosas...

Portanto, em termos políticos, quando um candidato consegue, como fez Bolsonaro, canalizar o conservadorismo moral, acaba por carregar o apoio de muita gente, de milhões de pessoas que passar a enxergá-lo como salvaguarda dos valores que defendem. Outrossim, dois aspectos se adicionaram ao conservadorismo: o ataque virulento àquilo que foi julgado como capaz de colocar em risco os valores e o espraiamento do conservadorismo moral pelas classes baixas, especialmente aquela multidão de pessoas que frequentam as igrejas neo-pentecostais, as quais também explicam a vitória do Bolsonaro. Assunto para o próximo tópico.



3. O NEOPENTECOSTALISMO

Um dos setores da população brasileira que votou em peso em Bolsonaro é composto pelas igrejas neopentecostais. A Igreja Universal do Reino de Deus, a Igreja Internacional da Graça de Deus, a Igreja Mundial do Poder de Deus, a Igreja Renascer em Cristo, a Igreja Evangélica Fonte da Vida, a Comunidade Cristã Paz e Vida e o movimento Renovação Carismática da Igreja Católica, são algumas das denominações desse movimento que se iniciou nas décadas de 70 e 80 do século passado, como uma dissidência do pentecostalismo mais tradicional. Essas igrejas são as que mais crescem em termos de número de fiéis no Brasil.

A teologia (se existe de fato uma...) que caracteriza o neopentecostalismo é, resumidamente, a da prosperidade. Ou seja, a fé é a chave para a pessoa ter saúde física e, especialmente prosperidade material; as doenças, a pobreza, o fracasso são decorrentes da falta de oração, do pecado e, especialmente, da incredulidade. Por isto é muito comum os rituais (espetáculos?) de exorcismo, pois o mal tem um nome, satanás, e é o responsável pelas agruras da vida; aliás, o fiel que se deixou "invadir" pelo demônio é um fraco que precisa ser redimido. O exorcismo é uma prática pedagógica que mira, única e exclusivamente, a comunidade dos fieis, para não repetirem os erros dos endemoniados. Da mesma forma as sessões de cura de doenças (outra forma de espectáculo?), pois, pela vontade divina, intercedida pelo ministro que ali está dirigindo a assembleia, apresenta-se a possibilidade da saúde física para que, assim, a pessoa curada possa correr atrás de sua prosperidade material. Nessas igrejas, os fiéis são levados a crer que o compromisso com a sua comunidade religiosa, pela doação do dízimo, pela compra de coisas tidas como sagradas (água, perfume, loções...), é o único vínculo que, de fato, importa, pois, no fundo, é a única forma de estabelecer o vínculo com o próprio Deus. Esta é, na prática, a tal da "verdade que vos libertará...". O vínculo religioso, nessas religiões, é um vínculo de vida coletiva e, com isso, as "diretrizes" dos líderes praticamente viram uma ordem.

Se há prosperidade material para as pessoas que frequentam as igrejas eu não sei, mas um fato é verdadeiro: há prosperidade para as igrejas, ou, mais especificamente, para os seus lideres (ministros, pastores, bispos...), os quais figuram, não raramente, entre os mais ricos do Brasil. Quem tiver dúvidas  pode pesquisar sobre a fortuna de Edir Macedo para comprovar o que estou afirmando. São igreja milionárias, que construíram templos nababescos (novamente pesquisem sobre o templo de Salomão da Igreja de Edir Macedo em São Paulo) e, especialmente, compraram redes de televisão, como é o caso da Record, afinal, essas igrejas têm que mostrar que a prosperidade começa com elas mesmas. A teologia da prosperidade se difundiu de forma impressionante pela TV; quem tem aparelhos com sintonia em UHF em casa sabe que existem, entre  religiosos católicos e evangélicos, um sem número canais, a maioria de igrejas neopentecostais.

Neste cenário religioso dois aspectos se destacam na contribuição com a eleição do Bolsonaro: o caráter conservador, baseado numa leitura literal da Bíblia, e o projeto de poder dos líderes dessas igrejas. Começo pelo último. Vários líderes neopentecostais se elegeram para vários cargos públicos, especialmente para a Câmara Federal, formando o que se chama hoje de bancada evangélica, e, com o atual presidente, estão ocupando cargos no governo federal. A frente evangélica,  formada a partir de 2010, tem, hoje, 195 deputados e 8 senadores. A atuação política é pela disputa de espaços em que há muito dinheiro em jogo, como a isenção de impostos às igrejas, a política de internação de dependentes químicos, e as disputas por questões tidas como morais, como a do aborto, o casamento homoafetivo e a liberação da maconha, dentre outras. Uma força política grande e capilarizada tende a fortalecer essas igrejas como verdadeiros campos de apoio e de frequente negociação. O caráter conservador, por sua vez, é o que alicerça moralmente as pessoas dessas igrejas, pois o conservadorismo acarreta, dentre outras coisas, uma passividade em relação ao estabelecido e uma reação a qualquer possibilidade de mudança. O conservadorismo moral arraigado impede, dentre outras coisas, que os fieis questionem a própria estrutura politica das igrejas (que o diga a própria Igreja Católica durante os séculos em que o Tribunal do Santo Ofício foi usado vastamente). A leitura literal da Bíblia, especialmente do Novo Testamento, serve, igualmente, ao propósito conservador à medida em que as ações, comportamentos, valores de dois mil atrás continuam sendo cultivados hoje, independente dos progressos pelos quais passou a sociedade.

Alguém pode estar pensando agora que este conservadorismo é, como tantos outros, hipócrita. Concordo, especialmente por parte de dirigentes!! No entanto, não podemos nos furtar a refletir sobre mais duas coisas rápidas: que buracos existenciais, que carências humanas o neopentecostalismo preenche e que outras instituições não conseguem fazer de forma mais saudável? E, o principal aqui, o conservadorismo neopentecostal se tornou um dos principais braços da eleição de Bolsonaro, tanto que ele mesmo fez questão de, em 2016, ser batizado no Rio Jordão, em um espetáculo calculado para que o seu nome do meio, Messias, tivesse uma conotação mística na política brasileira. 




4. O SAUDOSIMO DO REGIME MILITAR

Nelson Rodrigues escreveu uma crônica no jornal O Globo, em 29/03/1968, intitulada A viagem, em que afirma: "... o brasileiro esquece, com a mais cínica facilidade, a gangrena dos outros...". Já dizia alguém, ou alguns, ou muitos, que a memória é seletiva e, na seleção, um sentimento que é esquecido com certa facilidade é a dor, o sofrimento. A saudade do regime militar das décadas de 60 a 80 do século passado brasileiro é, tipicamente, um sentimento parcial. O problema é que tal parcialidade gerou um movimento, um tanto difuso (ainda bem!!!), que se revelou abertamente na greve dos caminhoneiros de 2018, com faixas pedindo a volta da ditadura, a volta dos militares ao poder. Na última manifestação em apoio a Bolsonaro, em março passado, novamente faixas e cartazes pedindo a intervenção militar. Eu não imagino o contingente de pessoas que compartilha de tal ideia, mas, com certeza, eles também ajudaram a elege-lo presidente.

Está claro para mim que não preciso aqui mostrar o que foi, de fato, a última ditadura militar no Brasil, pois não escrevo para os seus defensores. O que gostaria de mostrar é que uma parte dos brasileiros, tanto os que viveram como (pior!) os que não a viveram, realmente acredita que a resposta para a crise política, econômica, social e das instituições do Estado, em que o Brasil se encontrava em 2018 e se encontra ainda hoje, é uma nova intervenção dos militares; há pessoas que acreditam que vale a pena sacrificar a democracia em nome da estabilidade; há pessoas que crêem firmemente que o brasileiro, assim como uma criança, precisa ser tutelada por adultos (tidos como) sérios, honestos e cívicos, que atendem pela sua ocupação militar; há cidadãos brasileiros que acreditam que só um regime duro, implacável, calcado na censura e na repressão, pode, de fato, acabar com a corrupção e com o perigo do comunismo em terras tupiniquins...

De onde vem tal sentimento? Na minha opinião, a fonte é dupla: pessoas mais idosas, acima de 50 anos, que se lembram do crescimento econômico (o tal do milagre econômico) que o Brasil teve na época do regime militar, e a (re)leitura que setores conservadores da sociedade fazem da ditadura como uma época que não havia crises sociais e nem valores ditos comunistas. Sempre me recordo das "marchas com Deus pela liberdade" ocorridas pouco antes e pouco depois do fatídico 31/03/1964, que reuniram mais de um milhão de pessoas que defendiam a intervenção militar para afastar o "perigo vermelho" do Brasil. O problema é que em 2018 essas pessoas tiveram um porta-voz que encarnou a dupla fonte: o então candidato Jair Bolsonaro.

Fico pensando nas pessoas comuns que defendem a volta do regime militar e porque o fazem. Como nossa memória é seletiva, as pessoas valorizam apenas o que consideram os pontos positivos de tal forma de governo. É mais ou menos como a mulher que é agredida pelo marido e depois o perdoa quando ele promete que não irá mais machucá-la e que a ama etc. etc.; ela, a mulher, tende, por diversos motivos, a esquecer ou atenuar o sofrimento em nome do que trouxe mais prazer; o resultado todos conhecemos: depois de um tempo, as agressões voltam. As pessoas que defendem o governo dos militares não se lembram ou não valorizam as perseguições, as torturas, a censura, a lavagem cerebral por meio das propagandas e canções ufanistas; elas lembram apenas o que consideram coisas boas; elas não avaliam o custo humano, social, político e democrático que foi o regime militar. Apenas como exemplo de uma fonte documental que nos lembra o que foi o regime militar no Brasil nas décadas de 1960 a 1980 cito aqui o grupo Tortura Nunca Mais, que mostra o fato de muitas famílias não terem nem sequer conseguido enterrar seus parentes que foram torturados e mortos nos calabouços.

Mas, o maior problema é que existem pessoas, e o Bolsonaro é uma delas, e por isso as representa, que entendem que a tortura é algo necessário, pois somente os maus, os comunistas, os esquerdistas serão punidos e, assim, uma espécie de sentimento reprimido de expurgo, quase uma perversa catarse de depuração de doenças sociais é acionada. Se não foi (ainda bem!!) materializado até agora tal sentimento, o apoio e a eleição de Bolsonaro deixou claro que ele existe e, infelizmente, é maior do que eu imaginava.



5. RESSENTIMENTO E MERITOCRACIA

Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, afirma que o brasileiro é um homem cordial. Diferente do que muita gente interpretou, o adjetivo (no caso, está mais para substantivo!) cordial não remete somente, no caso da sua teoria,  à bondade, solidariedade, amizade... remete, também, à mediação de sentimentos egoístas nas relações pessoais e institucionais. Cordial deriva de coração que, em latim, é cor, portanto, remete, alegoricamente, aos nossos sentimentos. Como já disse alguém (se não me engano, Chico Buarque), "odiar é amar pelo lado do avesso"; metaforicamente fomos elaborando as coisas de amor e de ódio como localizadas, oriundas ou repercutidas no coração. Somos, portanto, muito cordiais. E um sentimento que, na minha opinião, ilustra muito bem a cordialidade é o ressentimento.

Há pessoas, e me parece que o número não é desconsiderável, que guardam um rancor, uma mágoa, pelo fato de outras pessoas conseguirem algo que elas julgavam pertencentes somente a elas. Vivemos uma ideologia que aponta que as pessoas são o que são, têm o que têm, por méritos próprios. Vivemos a época do coaching, de pessoas que se propõem a ser gurus dos outros, supostamente desenvolvendo as capacidades das outras para, por mérito, alcançarem o que quiserem. Ora, como, então, aceitar "de boa" que outros tenham acesso ao que se conseguiu merecidamente? Ver pessoas pobres comprando carro, viajando de avião, frequentando aeroportos, gerou no brasileiro das classes médias e altas um sentimento desconfortável de não se admitir que os espaços deles passassem a ser repartidos com quem não os merecia. Se você leitor se lembrar, vários videos foram postados em redes sociais mostrando indignação com pessoas mal vestidas em aeroportos, aviões, shopping centers das classes altas...

Nesta esteira, um dos programas do governo petista mais criticados por parte das classes médias e altas foi o Bolsa Família. Diziam que isto só alimentava a vagabundagem, que o governo não deveria dar esse tipo de esmola, pois os pobres, os miseráveis, deveriam trabalhar para valorizar o dinheiro e conseguir coisas a partir do seu próprio... mérito. Tal mecanismo emocional é muito parecido com aquele que nos leva a não admitir que nossa/nosso ex possa ter alguém ao seu lado; ou quando compramos algum celular bacana, que custou muito dinheiro, e nosso colega de sala de aula comprou um modelo mais avançado. Quantas pessoas que conhecemos que demonstram superficialmente (da boca pra fora) que ficaram alegres com as conquistas de amigos, mas que, na verdade, tiveram muita raiva porque a pessoa conseguiu algo e ela não, e a raiva é alimentada pela certeza de que o amigo não merecia aquilo, diferentemente dela que merecia muito mais... 

O problema, que se relaciona com a eleição do Bolsonaro, é que muito dos seus eleitores eram ressentidos, defensores da meritocracia. E aí, ouso afirmar, que o rancor não foi um privilégio das classes médias e altas, pois pessoas das classes baixas também ressentiram-se de outros pobres terem conseguido algum progresso material e eles não. Afirmo aqui que nem todos somos ressentidos, rancorosos ou defendemos a meritocracia, portanto, nem todos somos tão cordiais. Mas, para mim não resta dúvida de que um dos sentimentos que impulsionou o número de votos do Bolsonaro foi o ressentimento.



6. A ANTICIÊNCIA

A Terra é plana.
O Design Inteligente explica a criação do mundo.
As vacinas são uma forma do governo controlar as pessoas.

Estas afirmações, umas mais e outras menos, foram muito ouvidas no ano de 2018. Elas expressam um movimento que coloca em dúvida a ciência, prega mesmo a sua negação. As pessoas que congregam-se me torno desse movimento contribuíram, na minha opinião, com a eleição de Jair Bolsonaro.

A anticiência não é nova. Duvidar que a física, a química, a matemática, a biologia etc. explicam como o mundo material funciona é algo que vem desde os gregos antigos (ciências que atendiam pelo nome de Filosofia à época). A razão, digamos, iluminista, que unificou a nova ciência produzida desde o século XVIII, passou a impressão que, do século XIX em diante a humanidade iria caminhar, graças às descobertas científicas e suas criações e invenções, para um estado mais racional e deixaria, aos poucos, a ficção, a superstição, a desconfiança para trás, como peças de museus onde aprenderíamos, ao visitá-los, como a humanidade foi ignorante em comparação com o presente. O que pensariam os que lutaram pela emancipação da razão humana ao se depararem, por exemplo, com um movimento internacional, que já fez congressos, que afirma que o planeta Terra é plano? Provavelmente é o que eu penso ou o que pensa a maioria das pessoas: uma insanidade, uma expressão de fundo religioso sem qualquer base científica.

No entanto, o terraplanismo tem inúmeros adeptos no mundo todo, especialmente nos EUA, que reunem inúmeros argumentos, tidos por eles como científicos, para provar que a terra não é esférica. Da mesma forma os que acreditam na teoria do Design Inteligente, que explicaria que o mundo precisou de uma Inteligência superior que o criasse; o creacionismo é parente próximo dessa teoria que, como ela, nega a ciência darwiniana. O prática anti-vacina, que tem muitos adeptos Brasil afora, também compõe o espectro anticientífico, pois colocam em dúvida a eficácia imunológica advinda das pesquisas científicas. O caráter mais profundo da anticiência é que ela esvazia de importância os setores da sociedade que são, justamente, responsáveis pela ciência; universidades, institutos, instituições, museus etc., que perdem seu valor perante os movimentos anticientíficos. Daí para a concepção de que as universidades, especialmente as públicas (que, aliás, no Brasil são as grandes responsáveis pelos avanços científicos) reunem um antro de professores doutrinadores e de estudantes que só fazem balbúrdia, é um pulinho bem pequeno. Daí para atribuir a pecha de esquerdistas para os que estão nas universidades também é um passo bem curto. Lembre-se, caro leitor, de que já era discutido no Congresso Nacional a tal da "Escola sem Partido", que tinha por base a concepção de que a escola e as universidades eram espaços em que os professores doutrinavam politicamente seus alunos; seriam verdadeiras fábricas de produzir esquerdistas.

A concepção anticiência, mais especificamente o terraplanismo e a descrença nas vacinas, partem do princípio de que existe, há algum tempo, uma grande conspiração mundial, envolvendo governos, universidades, setores militares, imprensa e institutos de pesquisa básica e aplicada que escondem a verdade das pessoas, guiando-as por um moderno obscurantismo ao tornar as pessoas "cordeirinhos". Na época da eleição do Bolsonaro os conspiradores nacionais foram identificados como os de esquerda, que estariam produzindo, seja pela dita ciência ou pelas vacinas, gays, lésbicas, comunistas.

O problema, a meu ver, é que a própria ciência, a própria mentalidade iluminista, têm sua parte de culpa na criação e desenvolvimento da anticiência. Me explico (ou tento): a emancipação da razão humana, que desembocou no rápido desenvolvimento científico, não trouxe, como se acreditava, um bem-estar para a humanidade toda; a crença que o avanço científico eliminaria doenças, fome, pobreza na sociedade, acabou por não se estender para toda a população. Assim, a ciência se distanciou, aos poucos, das pessoas simples e comuns. A própria linguagem científica se distanciou enormemente da possibilidade de compreensão da média da população; que o diga a matemática, que não atualizou os seus termos e se tornou praticamente incompreensível para os alunos em geral, quiçá para as pessoas simples.

No entanto, o debate que a meu ver deveria existir a respeito do compromisso social da ciência e da revisão de sua linguagem rebuscada demais, não pode descambar na sua negação, pois ela, a negação da ciência, acarreta, sim, um moderno obscurantismo que propicia um irracionalismo pleno de superstição que, dentre outros efeitos, contribuiu para eleger alguém que, de certa forma, canalizou politicamente tal sentimento. A anticiência explica, também, a meu ver é claro, a disseminação das fake news e a negação da imprensa tradicional, assunto para o próximo tópico.



7. A IMPRENSA E AS FAKE NEWS

"Kit gay", "mamadeira de piroca", "legalização da pedofilia" são exemplos das chamadas fake news que, comprovadamente, ajudaram a eleger Bolsonaro em 2018. Muito já se falou sobre este tema, portanto, corro um sério risco de "chover no molhado". No entanto, para meus objetivos com esta análise é preciso tocar neste assunto. Até porque, falar em fake news é refletir sobre o papel da imprensa tradicional e a avaliação que dela foi feita num passado recente.

Como todos sabemos, notícias falsas em épocas de campanhas eleitorais não são novidade. Muitos políticos foram eleitos a partir de boatos, inclusive um golpe militar foi dado no Brasil respaldado muito pelo boato do perigo do comunismo. A novidade na campanha de 2018 foi, obviamente, o whatsapp, que disseminou, de forma nunca imaginada até então, os boatos, as fake news, favorecendo, imensamente, a candidatura de Jair Bolsonaro. Mas, a pergunta que devemos fazer é quais as razões que levaram as pessoas a acreditar em coisas absurdas, como o "kit gay", a se atemorizar que seus filhos na educação infantil poderiam ser transformados, de uma hora para outra, em gays? Claro que o medo faz parte do ser humano e há pessoas (talvez a maioria) que são a ele mais suscetíveis. No entanto, a crença nos boatos está pari passu com a descrença na imprensa tradicional; que, por sua vez, é uma repercussão direta da anticiência.

Claro que não ignoro que parte da imprensa, aquela já chamada de marrom, de sensacionalista etc., não tem muitos compromissos éticos com a verdade e com a ciência, como também não ignoro que certos veículos têm compromissos com ideologias bem claras. Minha referência aqui, no entanto, é a grande imprensa tradicional. Vou dar "nome aos bois": Folha de São Paulo, Estadão, Valor Econômico, O Globo, Veja, Isto é, Época, CBN, Bandeirantes e Globo. A imprensa tradicional, por mais interesses a que responda, tem o compromisso com os fatos e, portanto, com a ciência. Nenhum dos veículos de comunicação listados acima, e outros tantos, defenderam, por exemplo, que a Terra é plana, que desconsideram a existência, em nossa pré-história, dos dinossauros, ou que fizeram campanha antivacinação. O compromisso com a apuração dos fatos coloca a imprensa tradicional ainda como o veículo de maior confiança nas informações que passa para a população. O problema é que foi justamente essa imprensa que foi descridibilazada, justamente por informar, com o máximo de imparcialidade, os fatos e divulgar os avanços científicos. Uns mais críticos que os outros, tais veículos de comunicação não pouparam os mandatários na nação de reportagens que consideraram importantes de serem veiculadas, especialmente aquelas relativas a erros, graves ou leves, dos políticos. Talvez seja justamente por isto que a grande imprensa já vinha sofrendo ataques que a desgastou, e quando precisamos dela, do seu fortalecimento, da sua confiabilidade, grande parte das pessoas no Brasil, em 2018, já a descridibilizava. Li um artigo uma vez que mostrava que a Globo, em 2018, era atacada pela esquerda e pela direita; pela esquerda que a considerava (sempre a considerou) braço direito da direita, e a direita porque passou a considerá-la comunista. Para mim, em muitos casos, quando algo ou alguém é duramente criticado por dois lados antagônicos é porque esse alguém ou esse algo pode estar com a razão.

O fato é que os demônios que a esquerda criou durante muitos anos se voltaram contra ela na eleição de 2018. Se a grande imprensa, com uma multidão de jornalistas sérios, comprometidos com sua profissão, tivesse tido mais influência na eleição passada, apenas com os seus dados, levantamentos estatísticos, reportagens repercutidos, talvez a indústria de fake news não tivesse sido tão exitosa assim e, com isso, Jair Bolsonaro não tivesse sido eleito.

Estou consciente que leitores podem estar me acusando agora de ingenuidade, e até pode ser que tenham razão. Mas faço duas ponderações finais: primeira, a imprensa livre no Brasil é um dos fundamentos da democracia e uma das seguranças que aventureiros não cheguem facilmente ao poder; segunda, acho profundamente salutar que tenhamos grandes e tradicionais veículos de comunicação de interesses ideológicos diferentes, pois, com isso, podemos, inclusive, ter vários pontos de vista sobre um mesmo fato. Os tempos que estamos vivendo, creio, atestam. 




8. OS POLÍTICOS


Alexis de Tocqueville, escritor e deputado francês que viveu entre 1805 e 1859, em um discursos no parlamento francês em 1848, dentre outras coisas, afirmou:

Senhores, quando olho para a classe que governa, a classe que tem direitos políticos, e olho a classe dos governados e percebo o que se passa em ambas, perturbo-me. Na classe dominante vejo-a dominada exclusivamente pelos apetites pessoais, ambições materiais e interesses particulares. Meus caros colegas, aqui nesta casa nos últimos dez ou quinze anos aumenta o número daqueles que já não votam por razões políticas mas apenas guiados por seus interesses individuais. E aqui representamos exatamente a classe dirigente. Percebo igualmente a ascensão de uma nova moralidade: aqueles que conservam seus direitos políticos agem como se isto fosse um privilégio pessoal e não uma obrigação pública, uma responsabilidade.
E o que acontece na esfera pública naturalmente acontece na vida particular. Vejam esta onda de escândalos, de crimes, ofensas, esta brutalidade generalizada que unifica encarregados da ordem com os desordeiros. Quando isto ocorre em tal escala, não é razão para se assustar? A vida nacional reflete sempre a vida individual. A corrupção, o vício e a falta de nobreza, que campeiam nas ruas e nas casas, é a mesma que está instalada na corte e na administração.


Nada mais verdadeiro e aplicado a qualquer época, especialmente na nossa, e mais especialmente ainda a 2018.


Há algum tempo que o brasileiro médio se cansou da política e dos políticos. A distância que existe entre as promessas de campanha e o exercício dos mandatos foi se tornando cada vez maior; o discurso, especialmente nas campanhas eleitorais, da política como interesse público por um lado e, por outro, o exercício do mandato que visa o interesse particular, ou de grupo, foi sendo percebido com mais intensidade pela população; a troca de projetos de governo por projetos de poder escancarou a hipocrisia na política. Ficou claro que, em 2018, a chamada classe política tradicional foi rejeitada de forma dura pela maioria dos eleitores. Lembremos que o impeachment da presidenta Dilma foi seguido de um governo que, mesmo com um amplo apoio e acordo políticos, colocou os "dois pés" no atoleiro da imoralidade política. Se formos pensar, também, que o candidato natural com grandes chances de se eleger em 2018, Aécio Neves, após um enorme desgaste no intervalo das eleições, também não ganharia de Bolsonaro, deve suscitar reflexões. O mesmo aconteceu, por exemplo, no Rio de Janeiro com a eleição de Witzel, que, de desconhecido, passou por cima de Romário e de Eduardo Paes. Para além do envolvimento dos políticos tradicionais com corrupção, o que em si já é muito grave, penso que a falta de confiança da população em relação a eles se deve, especialmente, à ausência de uma verdadeira reforma política no Brasil... Mas, vamos por partes...


Claro que a política teve, desde sempre, pessoais que se aproveitaram de seus cargos em benefício próprio. Uma olhada em algumas comédias do grego Aristófanes (447-385 a.C.) nos mostra que na pátria das polis já existiam políticos corruptos. A própria citação do início deste tópico mostra como andavam as coisas na França na metade do século XIX. No Brasil, então, desde a proclamação da República, poderíamos pensar em vários políticos aproveitadores. No entanto, quando a maior parte dos políticos é vista dessa forma pela população, uma grave crise institucional se apresenta, o que pode gerar várias coisas, dentre elas, como já mostrava o velho Aristóteles, em Política, a democracia em crise pode gerar a demagogia, o populismo e, depois, a tirania. Uma sociedade em crise de representação se torna um terreno fértil para aventureiros, pessoas que, num estado normal de responsabilidade política, jamais conseguiriam se eleger. Tais crises geram, dentre outras coisas, os "mitos", ou seja, pessoas que, supostamente, estariam acima do bem e do mal e que teriam um poder de mudar as coisas radicalmente, pessoas que, tais como uma espécie de herói grego atualizado, teriam superpoderes de enfrentar e derrotar os inimigos. Além disso, o "mito" seria uma espécie de um ungido, quase um semi-deus que não pode ser contestado em sua missão de redimir a humanidade. No caso do Bolsonaro, apesar  de ter começado como algo jocoso (por programas televisivos como o Pânico na TV, aliás, apelativo e de qualidade muito duvidosa), o adjetivo "mito" acabou por se tornar praticamente um substantivo, cujo apelo  psicológico surtiu, sem dúvida, o efeito de novidade no mundo caótico da política em 2018.

O problema maior é que, apesar do discurso, o Brasil nas últimas eleições não fez, de fato, uma renovação política em termos de qualidade, mas, sim, apenas de quantidade, pois uma boa parcela dos eleitos só o conseguiu na esteira de Bolsonaro, o que, na realidade, não representa, em nada, uma saída para a crise institucional.

Talvez o que mais incomoda o brasileiro médio (e quando uso médio refiro-me à maioria que pode decidir uma eleição) são os verdadeiros privilégios que nossos deputados e senadores têm, pois, além de altos salários, além de uma grande quantia em dinheiro para contratar assessores e de uma outra quantia razoável para pagar aluguel, combustível, passagens aéreas, ternos, telefone e outras despesas pessoais e com o respectivo gabinete, ainda têm um plano de aposentadoria que a grande maioria dos brasileiros não pode, sequer, pensar em ter. Ainda por cima, um deputado ou um senador, e isto vale para os outros cargos legislativos no Brasil, pode se reeleger indefinidamente. Quem me conhece pessoalmente sabe que a maior bronca que tenho dos políticos em geral é que se recusam a fazer uma reforma política profunda no Brasil; se recusam a "cortar a própria carne". Acho que isto de fato só aconteceria se uma assembleia de cidadão brasileiros, escolhidos por critérios vários como idade, profissão, sexo etc., fosse responsável por ditar as novas normas que deveriam ser seguidas pelos nossos políticos tradicionais.

Voltando a Tocqueville, o maior problema da crise de representatividade política que o Brasil vive é que o (mau) exemplo dos políticos é, de certa forma, seguido por parte da população. Se aqueles que foram eleitos para representar o povo acabam por privilegiar seus próprios interesses, pessoas entendem que o interesse particular é mais importante que o geral. E, de certa forma, são os políticos quem deveriam representar justamente o interesse geral, interesse público, e quando eles estão em descrédito, abre-se a porta para oportunistas que, no caso de 2018, foram "representados" por Jair Bolsonaro. Uma das linhas de sua campanha foi, justamente, se colocar como alguém que não iria fazer o "jogo político" tradicional, que iria primar por um governo técnico e conduzir o Brasil para bem longe do comunismo petista. O voto, que é a forma privilegiada de se rebelar contra os políticos, foi usado, em 2018, para eleger alguém que, contrariamente ao seu discurso, representava, de fato, a velha política oportunista... Efetivamente, não havia diferença entre a forma de fazer política de Bolsonaro daquela representada pelos "velhos coronéis" e seus descendentes políticos, como os Sarney, os Magalhães, os Maias, os Calheiros etc., pois a sua própria família conta já com uma linhagem política, com seus três filhos em cargos públicos.

A eleição de Jair Bolsonaro, no que diz respeito à pretensa mudança do caráter da política no Brasil, confirma a frase de Giuseppe de Lampeduza, colocada na boa de um dos seus personagens de O Leopardo: "é preciso que tudo mude para que tudo permaneça como está".



9. O PSDB


O Partido da Social Democracia Brasileira foi criado em 1988 por Fernando Henrique Cardoso, Franco Montoro, José Serra, Mário Covas, Sérgio Mota, José Richa, dentre outros. Criado por dissidentes do PMDB e com identificação ideológica de centro, o partido presidiu o Brasil por dois mandatos, disputou com o PT as quatro eleições seguintes e, pela primeira vez em 24 anos o seu candidato a presidente teve menos de 5% dos votos em 2018. Na minha opinião e, diga-se de passagem, de muitas pessoas, o PSDB tem sua parcela de responsabilidade na eleição de Bolsonaro em 2018.

Criado, portanto, como um partido de centro, inclusive mais à esquerda do que à direita, o partido acabou fazendo uma opção de se identificar com a direita, como opção àqueles que não queriam votar no PT de Lula e, depois, de Dilma. No Brasil, talvez como em boa parte do mundo, as pessoas gostam das polarizações entre esquerda x direita, pois muitos dos votos não são "em" algum candidato, mas "contra" um determinado político. Dessa forma, o que se percebeu, ao longo do tempo, depois que o PSDB saiu do poder e passou a perder eleições para o PT, é que deixou sua identidade fundadora para se colocar, de fato, como uma opção à direita no quadro ideológico nacional. E mais, na eleição de 2014 o seu candidato Aécio Neves radicalizou sua postura política e, naquele momento, começou o discurso, potencializado de forma quase inacreditável em 2018, de que o PT era um partido de comunistas que iriam fazer do Brasil uma nova Venezuela.

O ano de 2016, no entanto, foi o ápice da aposta que o PSDB fez para ganhar, finalmente, do PT. Mas, antes, voltemos a 2014. A eleição em que a Dilma ganhou de Aécio por pouco mais de 3% dos votos válidos foi recheada de acusações e esgarçou o tecido político brasileiro. O resultado das eleições de 2014 foram repudiados por uma parcela significativa da população, que não admitiu a derrota de seu candidato; o Brasil foi dividido quase ao meio em termos de votos por estado. No entanto, o que deveria ser resolvido, democraticamente, quatro anos depois, resultou, em 2016, no processo de impeachment da presidenta eleita. A retirada de Dilma Roussef da presidência foi, sim, um ato político. A sessão histórica (e trágico-cômica) da Câmara dos Deputados deixou claro que não se tratava de condená-la pelas tais "pedaladas fiscais", mas sim, por ela ter vencido as eleições dois anos antes. E o PSDB? Ao invés optar pela sua identidade fundadora decidiu, enquanto partido, apoiar o impeachment, o que lhe valeu, na prática, o apoio a Michel Temer e o consequente desgaste conjunto perante a opinião pública (lembremos que José Serra foi ministro de Relações Exteriores de Temer). A aposta oportunista do PSDB o deixou longe de confirmar o que se acreditava em 2014: que o seu candidato seria, naturalmente, o favorito nas eleições de 2018.

Fiz questão de colocar aqui o PSDB como um dos responsáveis pela eleição do Jair Bolsonaro porque, diferente de muitos amigos meus, sempre achei que o partido de FHC, Montoro, Richa (pai) e Covas, entraria no jogo democrático pensando em nunca colocar os valores republicanos em xeque, nunca negaria a ciência e nunca faria uma campanha de descrédito da imprensa. No entanto, como já disse alguém: em política até a água sobe a cachoeira... ou seja, o "nunca" não existe no mundo da política. Mas, a história vem cobrando... e o ônus pela eleição de Bolsonaro deve ser dividido também com o PSDB.



10. AS ESQUERDAS BRASILEIRAS

Chegamos a um ponto desta analise que provavelmente fará diminuir o número de meus amigos. Começo com uma historinha, creio, bastante conhecida: Julio Cesar, o imperador romano do século I, teria dito a sua esposa Pompeia que à "mulher de César não basta ser séria, tem que parecer séria". Parafraseando o soberano romano, qualquer partido de esquerda e qualquer pessoa que se diga de esquerda ou que milite em movimentos de esquerda não pode simplesmente ser sério, tem também que parecer sério; seriedade no sentido de honestidade, comprometimento, respeito aos outros e às instituições democráticas e republicanas. E, quando afirmo esquerda, estou me referindo àquela ideologia que coloca os interesses da população menos assistida em primeiro lugar, portanto, não estou aqui me referindo somente ao socialismo e/ou comunismo.

A sociedade na qual vivemos é denominada capitalista. Dispensa aqui fazer uma longa descrição do que seja o capitalismo até por que creio que meus leitores o sabem. Mas, por priorizar a produção do capital e a propriedade, a nossa sociedade, sem a intervenção do Estado, deixaria os trabalhadores à sua sorte. Nada mais natural, no capitalismo, que pouco mais de quarenta pessoas tenham, no Brasil, uma renda equivalente a mais de 50 milhões de cidadãos. Nada mais natural, para o capitalismo, que exista uma massa de desempregados que empurra os salários para baixo, que eleva a idade para a aposentadoria e que estimula o emprego informal. Se existe algum ganho para o trabalhador, como salário mínimo, férias, fundo de garantia, aposentadoria etc., isto se deve a atuação de movimentos sociais que pressionaram os interesses dos grandes e ajudaram a configurar um Estado que precisa intervir na economia em prol do interesse dos mais fracos. Portanto, resumidamente, as esquerdas que lutam por uma sociedade mais inclusiva, mesmo capitalista, "nadam sempre contra a corrente". O papel da esquerda é, dentre outras coisas, e sempre, pedagógico; é mostrar, é argumentar, é convencer as pessoas que o interesse dos mais pobres, dos mais necessitados, dos mais indefesos, é sempre prioridade em uma sociedade excludente como a nossa; tarefa das mais difíceis e das mais fundamentais.

Por isto que, quando chegam ao poder, os partidos de esquerda jamais podem trocar seus objetivos por ganhos, jamais podem trocar projetos de governo por projetos de poder. Ao agirem assim a esquerda pouco se diferencia da direita. Os partidos de direita, cujas ideologias sociais e econômicas são um eco dos interesses do grande capital, agem conforme deles é esperado, especialmente no que diz respeito à diminuição da interferência do governo na economia, afinal, "o mercado se autorregula". Os partidos de esquerda, ao contrario, pensam no governo como regulador da economia, ao buscarem estabelecer políticas públicas que dêem mais possibilidades de mudança social e econômica para as pessoas mais pobres. A riqueza de uma nação se mede, para a direita, pelos número de grandes empresas que ela tenha; para a esquerda também e, especialmente, pelo número de pessoas que saem da pobreza. Portanto, os interesses da esquerda se chocam com muitos outros interesses e, por isso mesmo, ela é mais visada, mais controlada, mais denunciada.

O Partido dos Trabalhadores representou, no Brasil, nas últimas décadas, a esquerda brasileira. Claro que existem outros partidos de esquerda, mas o PT comandou o país de 2002 a 2016. Na minha opinião, inúmeros foram os benefícios que esses governos trouxeram para o Brasil. No entanto, para meu objetivo aqui, é preciso deixar claro que foram inúmeras, também, as ações que comprometeram a atuação desse partido, especialmente aquelas vinculadas com algum tipo de corrupção. Mas, para mim, o principal erro do PT, e dos partidos de esquerda que compuseram o governo, foi não ter encarado a necessidade de uma reforma política que sinalizasse para a população uma verdadeira e profunda intenção de mudar a cara da política no Brasil. O PT se acostumou ao poder... que é o pior que poderia ter acontecido. O Partido dos Trabalhadores trocou seu projeto de governo por um projeto de poder. Negociações estranhas, apoios questionáveis, economia maquiada, trouxeram  descrédito. O partido se personificou na figura de Lula, que passou a ser tratado como salvador da pátria, quase um messias enviado e reenviado para expulsar os demônios da política brasileira. O problema é que, com os escândalos de corrupção, o feitiço virou contra o feiticeiro e aplainou o terreno para um novo messias ser eleito, e não alguém da direita, mas da extrema direita.

Claro que tenho consciência de que na politica as negociações são constantes e que nenhum partido governa sozinho, e que, também, muita gente boa fez e faz parte do PT, mas, como escrevi acima, a esquerda não tem o direito de errar como errou. Cobramos dela muito mais compostura política do que dos outros, e, nesta sociedade em que vivemos, é assim que a "banda toca". A esquerda precisa fazer uma autocrítica de sua história como governo no Brasil. Só assim ela conseguirá resgatar sua importante e necessária influência na sociedade. Se não o fizer, corre o risco de buscar não o governo, e sim o poder, o qual, como já diziam os antigos, "corrompe, entorpece e deforma a alma".

A esposa de Cesar tinha que, além de ser, parecer séria. A esquerda, por meio de alguns de seus representantes, não pareceu e, portanto, não foi séria. O resultado é que não se pode isentá-la de ter a sua parcela de contribuição na eleição de Jair Bolsonaro. 




CONCLUINDO...

Meu objetivo com esta reflexão foi mostrar a minha visão do conjunto de fatores que levaram Jair Bolsonaro ao mais alto cargo da política brasileira. Provavelmente esta avaliação está bem atrasada, mas acho que eu precisei de uma certa distância temporal para conseguir (ou pretender) enxergar com mais nitidez o que aconteceu na segunda metade de 2018.

Também escrevi por que, de fato, ainda parece, inacreditável para mim (e para muitos) que o Brasil tenha eleito alguém tão fanfarrão, conservador, oportunista e despreparado. A crise da pandemia do Covid-19 nos mostra o quão perigoso para o Brasil está sendo sua eleição. Um verdadeiro líder, seja de direita, centro ou esquerda, deveria unir a sociedade em torno dele, deveria inspirar confiança numa condução calma, segura e firme; é exatamente o oposto disto que ele propaga.

Ora, apesar de tudo isto, ele continua com sua popularidade pouco atacada. Apesar de muitas pessoas estarem demonstrado arrependimento em ter votado nele, a grande maioria dos seus eleitores, no entanto, continua o apoiando. O conservadorismo continua em alta; o neopentecostalismo continua crescendo; a saudade do regime militar sempre aparece em manifestações pró-Bolsonaro; o ressentimento e a meritocracia ainda permeiam a mentalidade do brasileiro; as crenças anticientíficas estão a nossa volta, como, por exemplo, a afirmação do Olavo de Carvalho (um dos alicerces ideológicos do governo) de que não existe pandemia, que isto é invenção dos chineses; a imprensa recuperou um pouco de sua credibilidade, mas as fake news continuam a toda nas redes sociais; os políticos recuperaram, ao que parece, um pouco de credibilidade, mas os movimentos pró-Bolsonaro se colocam contra o Congresso Nacional e o STF.

Dos nove fatores por mim apontados como responsáveis pela eleição de Bolsonaro não consigo quantificar qual ou quais foram mais decisivos. Claro está que, até hoje, quando alguém posta alguma coisa nas redes sociais (inclusive eu) questionando o seu governo, é praticamente automático alguém fazer comentário tipo: "ah sim, com o Lula e o PT as coisas iriam melhorar? Com eles o Brasil já tinha virado uma nova Venezuela...". Parece que o antipetismo, tratado como anticomunismo, ainda é um argumento recorrente dos seus apoiadores. Mas, apesar disto, julgo que cada fator por mim elencado tem sua importância e, portanto, não se pode a nenhum  menosprezar. Há eleitores e apoiadores de Bolsonaro que reunem todos os aspectos arrolados ao longo deste texto, há outros que talvez reunam alguns, e pode ser que o que decidiu a eleição no segundo turno tenha sido mesmo o anti-petismo, mas o fato é que, em minha opinião, nenhum deles deve ser menosprezado.

Enfim, o contexto ainda não mudou muito, o que exige daqueles que, da mesma forma que eu, têm a tarefa de não deixar o fenômeno Bolsonaro acontecer novamente, que avaliemos a situação com a razão e não com o fígado.

Para aqueles que tiveram paciência de chegar até aqui, meu muito obrigado pela leitura!!


domingo, 15 de dezembro de 2019

Natal, Porta dos Fundos e a polêmica...

Como milhões de pessoas assisti, recentemente, o especial de Natal do Porta dos Fundos de 2019. Confesso que achei mais engraçado o especial do ano passado e, é claro, já sabia que o vídeo iria gerar polêmica e protestos da comunidade cristã brasileira e, porque não, mundial. O episódio apresenta os personagens bíblicos de forma, obviamente, pouco usual em termos religiosos: Jesus se descobrindo gay, Deus muito pouco justo ou correto, Maria longe de ser santa, José, péssimo carpinteiro,  como um homem normal que acredita ser o verdadeiro pai de Cristo, os reis magos como mesquinhos, e o diabo, bem, como diabo...

Os protestos contra o video são vários e o mais significativo é o abaixo-assinado, que já conta com mais de 1,5 milhão de pessoas, que quer excluir o filme do catálogo da Netflix. Este movimento me lembrou, dentre outros, de dois ocorridos no Brasil. O primeiro, em 1985, com a proibição do filme franco-suíço Je vous salut Marie, e o segundo, ocorrido em 1988, com vários protestos contra a exibição do filme A última tentação de Cristo. A motivação das manifestações passadas é a mesma da atual, ou seja, a indignação dos cristãos com histórias que mostram Jesus, Maria e outros personagens bíblicos de forma humana e não divina. Je vous salut Marie foi proibido no Brasil durante o governo Sarney, de 1985 a 1989; A última tentação de Cristo foi proibido em vários países em 1988 e, em Singapura e Filipinas, ficou censurado até 2010. E, com a recrudescência do conservadorismo cristão na atualidade em várias partes do mundo, e particularmente no Brasil, novamente há o clamor religioso pela censura.

Fico me perguntando porque, em pleno 2019, com o avanço do estado laico, há, ainda, tanta indignação com produções que caracterizam Jesus de forma humana. Jesus negro, Jesus mulher, Jesus gay, Jesus que pode ser tentado, são todas manifestações absolutamente proibidas pelo cânones religiosos, e são considerados verdadeiros atentados contra a humanidade, a ponto de não poderem ser, sequer, ventilados como possibilidades. O Jesus histórico de dois mil anos atrás, se fosse atualizado, certamente seria diferente e, por isso mesmo, quem sabe novamente denunciado pelos seus.  Há uma diferença grande entre quem veicula uma determinada visão, fantasiosa ou não, acerca da religião e de seus fundamentos: qualquer voz e veiculo de comunicação ou arte que represente qualquer governo civil nunca está autorizado a confirmar, criticar ou mesmo brincar com assuntos teológicos; mas, qualquer instituição civil, qualquer grupo independente pode afirmar, negar, polemizar com assuntos religiosos. O grupo Porta dos Fundos  vem, há vários anos, produzindo vídeos curtos satirizando vários aspectos da nossa sociedade, em especial, a religião cristã. Quem acompanha, como eu, Tabet, Porchat, Duduvier, Portugal e competente companhia, sabe que o humor deles é abusado, fino, perspicaz, audacioso e, especialmente, debochado. São vários os vídeos em que o Jesus Cristo, Maria, José, Moisés, os apóstolos, são apresentados em cenas inusitadas. Mas, parece que associar o deboche ao Natal foi longe demais para muitos cristãos, zelosos da moralidade social.

O interessante, e talvez seja essa a motivação do sarcasmo do Porta dos Fundos, é que a moralidade cristã, especialmente no último ano, não move as pessoas a combater fortemente a violência contra os pobres, negros, homossexuais; a denunciar eficazmente o abuso sexual de crianças que ocorre, em sua grande maioria, por pais, avós, tios, em famílias cristãs; a defender de forma arraigada a liberdade que as pessoas deveriam ter para ter e professar a fé que quiserem (afinal, Jesus não ensinou que devemos amar nosso próximo como a nós mesmos?? Será que esta não é, de fato, a verdade que libertará?); a se opor enfaticamente à continuação do uso privado dos recursos públicos pelos agentes públicos, especialmente os políticos...

Enfim, o que deveria se esperar de pessoas que não concordam com o especial de Natal do Porta dos Fundos é que façam uma campanha para as pessoas não assistirem. Isto, para mim, faz parte da democracia. Agora, apelar para a censura do filme, defender que o video seja excluído do catálogo da Netflix, isto é um verdadeiro absurdo. Tal atitude faz parte de um Estado teocrático, autocrático, ditatorial, tudo, menos democrático. Defendamos a liberdade de expressão sempre!! Liberdade de toda forma de expressão, especialmente daquelas que nós menos nos identificamos, pois só assim, quem sabe, conseguiremos construir uma sociedade que, de fato, tenha a empatia no seu DNA.

Ah, e o mais interessante nisso tudo é que, ao final, o video acaba sendo conservador do ponto de vista teológico, pois, apesar de tudo, Jesus descobre sua missão e a aceita...




domingo, 26 de maio de 2019

Game of Thrones - uma série rara e apaixonante...

Sim, eu também não gostei muito da última temporada de Game of Thrones (GOT). Sim, eu também esperei um desfecho diferente, especialmente da personagem Daenerys. Na minha avaliação, o penúltimo episódio da série contribuiu, negativamente, para um sentimento quase de frustração com o final. No entanto, quero escrever aqui sobre a série como um todo. E escrevo, no fundo, para cumprir uma espécie de luto que estou sentindo com o final de uma série que teve oito temporadas ao longo de nove anos.

As pessoas que me conhecem sabem que me tornei gotmaníaco. No apartamento onde moro tem várias referências, como quadros, inúmeras camisetas, blusa, chinelo, e até os nomes de minhas gatas, Ária e Sansa, são homenagem à série. Assisti ao vivo, aos domingos a noite (precisamente com início às 22:03), praticamente todos os episódios. Re-assisti, em janeiro passado, as sete primeiras temporadas. Mas, porque esta série me encantou tanto? Mais do que a ambientação medieval e a existência de gigantes, zumbis e dragões (o que para mim nunca foi o ponto forte da história), o que me chamou a atenção foi o enredo realista e sem concessões ao maniqueísmo de uma luta sem limites pelo poder. O reino de Westeros, simbolizado por um trono feito por milhares de espadas parcial ou totalmente derretidas - o Trono de Ferro -, foi o palco de uma luta entre famílias pelo seu domínio. Personagens fortes, marcantes: alguns, líderes que chefiaram exércitos: outros, aconselharam líderes, que mataram, mandaram matar, e que morreram... sim, muitos morreram e, alguns deles, justamente os que encarnaram os mocinhos da história.

A principal característica da série, que prendeu minha atenção desde o início e que me fez ler os livros (cinco publicados de sete prometidos por R. R. Martin), foi o fato de que, desde o início, a história seguiu um enredo que não poupou os personagens do bem de acidentes e mortes injustas. Logo no primeiro episódio um menino (personagem importante) é atirado do alto de uma torre por ter presenciado uma cena de sexo entre dois irmãos: a rainha, Cercei, e o chefe da guarda pessoal do rei (Jaime), seu marido (Robert), os dois que, aliás, eram os verdadeiros pais dos três filhos da rainha com o rei. O menino, que virá a se tornar o rei de Westeros no final da série - Bran, o Quebrado -, é de uma das famílias centrais da história, os Stark, da casa Winterfel, do norte gelado. O pai do garoto, que ficou paraplégico, teve sua cabeça cortada por decisão do rei Joffrey (filho de Robert); o irmão e a mãe do garoto (Catelyn e Rob) morreram assassinados durante um casamento; o irmão mais novo do garoto (Rickon) morreu com uma flechada nas costas... dentre todas as mortes ocorridas ao longo da história estas estão entre as mais sentidas pelos expectadores. A coerência do enredo não poupou ninguém, porque "no jogo dos tronos ou você vence ou você morre". A coerência da série se deveu ao fato de que a história não se rendeu ao maniqueísmo triunfalista, que acaba por poupar os heróis e se livrar dos vilões.

Quem me conhece há algum tempo já me ouviu dizer que "a vida não é linear". A vida não tem a coerência que gostaríamos que tivesse, e isto pelo simples fato de que a nossa vida está, direta ou indiretamente, ligada à vida de outras pessoas e está conectada a uma série de circunstâncias que, na maioria das vezes, escapam de nosso pretenso controle. Assim é a série... pessoas que, ungidas como grandes líderes, acham que estão acima das vicissitudes da vida, acabam em situações que não gostariam, e pessoas egoístas, capazes de atrocidades, acabam por ser beneficiadas... situações que surpreendem os idealistas ou os defensores de que o ser humano é bom por natureza. A rigor, não existe quem personifica o bem e quem personifica o mal na história. Há, é claro, os heróis e os vilões, mas os primeiros têm seus momentos de vilões e os últimos têm seus momentos de heróis. Nos acostumamos, com o tempo, nas disputas pelo trono de Westeros, a desgostar de quem achamos que deveríamos sempre gostar e a gostar de quem jurávamos que iríamos sempre odiar. John deixou Ygritte, seu primeiro amor, morrer; Bran deixou Odor morrer; Rob  mandou matar prisioneiros; Daenerys matou, implacavelmente, muita gente, como exemplos das atitudes condenáveis dos heróis... entre os vilões, Cercei acabou com a religião do Alto Pardal; Jaime voltou para salvar Brienn; Cão de Caça ajudou Sansa... Enfim, a série nos levou, algumas vezes, à uma contradição interna no expectador, aliás, como a própria vida nos prega peças às vezes...

É claro que alguns personagens foram marcados por um amor ou um ódio mais constantes por parte de nós, expectadores: Eddard, Ária, John, Gendry, Samuel, Odor, Davos, Missandei, Lyanna estão entre aqueles que amei mais  intensamente; Joffrey, Cercei, Ramsay, Mindinho, Euron, Walder estão entre aqueles que passei a odiar com mais intensidade. No entanto, como, para mim, amor e ódio são apenas dois lados da mesma moeda, tantos os amados como os odiados me marcaram intensamente... Alguns personagens, por sua vez, marcaram pela profundidade realista em expor como o jogo dos tronos era ou deveria ser jogado, mas nem por isso se deram bem por conhecerem, mais do que outros, as regras: Tyrion, Varys, Mindinho e  Meistre Aemon foram, na minha opinião, os personagens que propiciaram os diálogos mais importantes para quem, apesar das paixões, queria prestar atenção nas verdadeiras razões da guerra e, consequentemente, em como agir para sobreviver e se dar bem. O mais interessante é que não teve nenhum personagem, sejam os mais simples, quase figurantes de luxo, ou os mais importantes, que ficou "sobrando" na série. Cada diálogo, cada cena, por mais aparentemente insignificante para a história, teve importância, ou seja, não teve praticamente na "fora do lugar". A série não cometeu o "pecado" de muitas séries longas: "encher linguiça" para ganhar tempo para o desenrolar do enredo.

Conchavos inúmeros, batalhas épicas (dos Bastardos, a Grande Batalha contra o Rei da Noite), mortes brutais (Ned Stark, Joffrey, Oberyn, Ramsay), reis e rainhas, legítimos ou não (Robert, Stanis, Renly, Rob, Joffrey, Tommen, Cercei, Daenerys, John, Sansa, Bran),  filmados com impressionantes efeitos visuais, deram o tom eletrizante à história. Dragões, gigantes, zumbis, a grande muralha, foram apenas os temperos de um banquete que foi servido ao longo de anos.

Enfim, GOT é uma série que vai deixar saudades. Ainda bem que R. R. Martin prometeu que terminará a história dos livros - As Crônicas de Gelo e Fogo - com os volumes 6 e 7. Sem dúvida, e quem leu os livros concordará comigo, a história escrita é mais rica que a história filmada. Aliás, como o próprio Martin já falou, são duas formas diferentes de contar a mesma história. Quem sabe, no livro, o final seja diferente da série, pois, como afirmei no início deste post, o penúltimo episódio comprometeu o final da história, pois errou justamente na sua maior virtude, a coerência, pois foi muito mal construída a loucura e a morte da Rainha dos dragões e os fatos daí decorrentes, como a morte de Varys. De resto, o final da série foi interessante: Bran, o Quebrado, como rei de Westeros, algo inusitado, mas com lógica; John Snow exilado nas terras de além da muralha, inusitado, mas com lógica; Arya viajando para Oeste de Westeros, um final que combinou com o que ela se tornou, uma guerreira e não uma lady; Sansa como rainha do Norte, inesperado, mas combinando com a Matriarca Stark em que ela se tornou; Tyrion como mão do rei, esperado... enfim, um final tipo happy end é que, definitivamente, não combinaria...

Para terminar, registro, aqui, os meus tops da série:

- melhor herói: Rob Stark
- melhor vilão: Cercei Lannister
- mais odiado: Ramsay Bolton
- mais amado: John Snow
- personagem mais eletrizante: Daenerys Targarien
- personagem mais intrigante: Tyrion Lannister
- personagem mais inteligente: Lord Varys
- personagem "canção da América": Samwell Tarly
- personagem "bipolaridade": Theon Greyjoy
- personagem fidelidade: Brienne de Tarth
- personagem "menina maravilha": Lyanna Mormont
- melhor cena: Arya matando o Rei da Noite
- cena mais inesperada: Casamento Vermelho
- cena de tirar o fôlego: a retirada dos selvagens da praia das terras de além da muralha
- melhor casal: John Snow e Ygritte
- melhor reviravolta: Mindinho condenado à morte por Sansa
- melhor cena de empoderamento feminino: Daenerys queimando os chefes dos dhotrakis
- melhor luta: Gregor Clegane mata Oberin Martell
- cena mais triste: morte de Hodor
- cena mais impressionante: o dragão que se tornou zumbi
- melhor temporada: a quarta
e...
- personagem mais mais mais de tudo: ARYA STARK