domingo, 15 de dezembro de 2019

Natal, Porta dos Fundos e a polêmica...

Como milhões de pessoas assisti, recentemente, o especial de Natal do Porta dos Fundos de 2019. Confesso que achei mais engraçado o especial do ano passado e, é claro, já sabia que o vídeo iria gerar polêmica e protestos da comunidade cristã brasileira e, porque não, mundial. O episódio apresenta os personagens bíblicos de forma, obviamente, pouco usual em termos religiosos: Jesus se descobrindo gay, Deus muito pouco justo ou correto, Maria longe de ser santa, José, péssimo carpinteiro,  como um homem normal que acredita ser o verdadeiro pai de Cristo, os reis magos como mesquinhos, e o diabo, bem, como diabo...

Os protestos contra o video são vários e o mais significativo é o abaixo-assinado, que já conta com mais de 1,5 milhão de pessoas, que quer excluir o filme do catálogo da Netflix. Este movimento me lembrou, dentre outros, de dois ocorridos no Brasil. O primeiro, em 1985, com a proibição do filme franco-suíço Je vous salut Marie, e o segundo, ocorrido em 1988, com vários protestos contra a exibição do filme A última tentação de Cristo. A motivação das manifestações passadas é a mesma da atual, ou seja, a indignação dos cristãos com histórias que mostram Jesus, Maria e outros personagens bíblicos de forma humana e não divina. Je vous salut Marie foi proibido no Brasil durante o governo Sarney, de 1985 a 1989; A última tentação de Cristo foi proibido em vários países em 1988 e, em Singapura e Filipinas, ficou censurado até 2010. E, com a recrudescência do conservadorismo cristão na atualidade em várias partes do mundo, e particularmente no Brasil, novamente há o clamor religioso pela censura.

Fico me perguntando porque, em pleno 2019, com o avanço do estado laico, há, ainda, tanta indignação com produções que caracterizam Jesus de forma humana. Jesus negro, Jesus mulher, Jesus gay, Jesus que pode ser tentado, são todas manifestações absolutamente proibidas pelo cânones religiosos, e são considerados verdadeiros atentados contra a humanidade, a ponto de não poderem ser, sequer, ventilados como possibilidades. O Jesus histórico de dois mil anos atrás, se fosse atualizado, certamente seria diferente e, por isso mesmo, quem sabe novamente denunciado pelos seus.  Há uma diferença grande entre quem veicula uma determinada visão, fantasiosa ou não, acerca da religião e de seus fundamentos: qualquer voz e veiculo de comunicação ou arte que represente qualquer governo civil nunca está autorizado a confirmar, criticar ou mesmo brincar com assuntos teológicos; mas, qualquer instituição civil, qualquer grupo independente pode afirmar, negar, polemizar com assuntos religiosos. O grupo Porta dos Fundos  vem, há vários anos, produzindo vídeos curtos satirizando vários aspectos da nossa sociedade, em especial, a religião cristã. Quem acompanha, como eu, Tabet, Porchat, Duduvier, Portugal e competente companhia, sabe que o humor deles é abusado, fino, perspicaz, audacioso e, especialmente, debochado. São vários os vídeos em que o Jesus Cristo, Maria, José, Moisés, os apóstolos, são apresentados em cenas inusitadas. Mas, parece que associar o deboche ao Natal foi longe demais para muitos cristãos, zelosos da moralidade social.

O interessante, e talvez seja essa a motivação do sarcasmo do Porta dos Fundos, é que a moralidade cristã, especialmente no último ano, não move as pessoas a combater fortemente a violência contra os pobres, negros, homossexuais; a denunciar eficazmente o abuso sexual de crianças que ocorre, em sua grande maioria, por pais, avós, tios, em famílias cristãs; a defender de forma arraigada a liberdade que as pessoas deveriam ter para ter e professar a fé que quiserem (afinal, Jesus não ensinou que devemos amar nosso próximo como a nós mesmos?? Será que esta não é, de fato, a verdade que libertará?); a se opor enfaticamente à continuação do uso privado dos recursos públicos pelos agentes públicos, especialmente os políticos...

Enfim, o que deveria se esperar de pessoas que não concordam com o especial de Natal do Porta dos Fundos é que façam uma campanha para as pessoas não assistirem. Isto, para mim, faz parte da democracia. Agora, apelar para a censura do filme, defender que o video seja excluído do catálogo da Netflix, isto é um verdadeiro absurdo. Tal atitude faz parte de um Estado teocrático, autocrático, ditatorial, tudo, menos democrático. Defendamos a liberdade de expressão sempre!! Liberdade de toda forma de expressão, especialmente daquelas que nós menos nos identificamos, pois só assim, quem sabe, conseguiremos construir uma sociedade que, de fato, tenha a empatia no seu DNA.

Ah, e o mais interessante nisso tudo é que, ao final, o video acaba sendo conservador do ponto de vista teológico, pois, apesar de tudo, Jesus descobre sua missão e a aceita...




domingo, 26 de maio de 2019

Game of Thrones - uma série rara e apaixonante...

Sim, eu também não gostei muito da última temporada de Game of Thrones (GOT). Sim, eu também esperei um desfecho diferente, especialmente da personagem Daenerys. Na minha avaliação, o penúltimo episódio da série contribuiu, negativamente, para um sentimento quase de frustração com o final. No entanto, quero escrever aqui sobre a série como um todo. E escrevo, no fundo, para cumprir uma espécie de luto que estou sentindo com o final de uma série que teve oito temporadas ao longo de nove anos.

As pessoas que me conhecem sabem que me tornei gotmaníaco. No apartamento onde moro tem várias referências, como quadros, inúmeras camisetas, blusa, chinelo, e até os nomes de minhas gatas, Ária e Sansa, são homenagem à série. Assisti ao vivo, aos domingos a noite (precisamente com início às 22:03), praticamente todos os episódios. Re-assisti, em janeiro passado, as sete primeiras temporadas. Mas, porque esta série me encantou tanto? Mais do que a ambientação medieval e a existência de gigantes, zumbis e dragões (o que para mim nunca foi o ponto forte da história), o que me chamou a atenção foi o enredo realista e sem concessões ao maniqueísmo de uma luta sem limites pelo poder. O reino de Westeros, simbolizado por um trono feito por milhares de espadas parcial ou totalmente derretidas - o Trono de Ferro -, foi o palco de uma luta entre famílias pelo seu domínio. Personagens fortes, marcantes: alguns, líderes que chefiaram exércitos: outros, aconselharam líderes, que mataram, mandaram matar, e que morreram... sim, muitos morreram e, alguns deles, justamente os que encarnaram os mocinhos da história.

A principal característica da série, que prendeu minha atenção desde o início e que me fez ler os livros (cinco publicados de sete prometidos por R. R. Martin), foi o fato de que, desde o início, a história seguiu um enredo que não poupou os personagens do bem de acidentes e mortes injustas. Logo no primeiro episódio um menino (personagem importante) é atirado do alto de uma torre por ter presenciado uma cena de sexo entre dois irmãos: a rainha, Cercei, e o chefe da guarda pessoal do rei (Jaime), seu marido (Robert), os dois que, aliás, eram os verdadeiros pais dos três filhos da rainha com o rei. O menino, que virá a se tornar o rei de Westeros no final da série - Bran, o Quebrado -, é de uma das famílias centrais da história, os Stark, da casa Winterfel, do norte gelado. O pai do garoto, que ficou paraplégico, teve sua cabeça cortada por decisão do rei Joffrey (filho de Robert); o irmão e a mãe do garoto (Catelyn e Rob) morreram assassinados durante um casamento; o irmão mais novo do garoto (Rickon) morreu com uma flechada nas costas... dentre todas as mortes ocorridas ao longo da história estas estão entre as mais sentidas pelos expectadores. A coerência do enredo não poupou ninguém, porque "no jogo dos tronos ou você vence ou você morre". A coerência da série se deveu ao fato de que a história não se rendeu ao maniqueísmo triunfalista, que acaba por poupar os heróis e se livrar dos vilões.

Quem me conhece há algum tempo já me ouviu dizer que "a vida não é linear". A vida não tem a coerência que gostaríamos que tivesse, e isto pelo simples fato de que a nossa vida está, direta ou indiretamente, ligada à vida de outras pessoas e está conectada a uma série de circunstâncias que, na maioria das vezes, escapam de nosso pretenso controle. Assim é a série... pessoas que, ungidas como grandes líderes, acham que estão acima das vicissitudes da vida, acabam em situações que não gostariam, e pessoas egoístas, capazes de atrocidades, acabam por ser beneficiadas... situações que surpreendem os idealistas ou os defensores de que o ser humano é bom por natureza. A rigor, não existe quem personifica o bem e quem personifica o mal na história. Há, é claro, os heróis e os vilões, mas os primeiros têm seus momentos de vilões e os últimos têm seus momentos de heróis. Nos acostumamos, com o tempo, nas disputas pelo trono de Westeros, a desgostar de quem achamos que deveríamos sempre gostar e a gostar de quem jurávamos que iríamos sempre odiar. John deixou Ygritte, seu primeiro amor, morrer; Bran deixou Odor morrer; Rob  mandou matar prisioneiros; Daenerys matou, implacavelmente, muita gente, como exemplos das atitudes condenáveis dos heróis... entre os vilões, Cercei acabou com a religião do Alto Pardal; Jaime voltou para salvar Brienn; Cão de Caça ajudou Sansa... Enfim, a série nos levou, algumas vezes, à uma contradição interna no expectador, aliás, como a própria vida nos prega peças às vezes...

É claro que alguns personagens foram marcados por um amor ou um ódio mais constantes por parte de nós, expectadores: Eddard, Ária, John, Gendry, Samuel, Odor, Davos, Missandei, Lyanna estão entre aqueles que amei mais  intensamente; Joffrey, Cercei, Ramsay, Mindinho, Euron, Walder estão entre aqueles que passei a odiar com mais intensidade. No entanto, como, para mim, amor e ódio são apenas dois lados da mesma moeda, tantos os amados como os odiados me marcaram intensamente... Alguns personagens, por sua vez, marcaram pela profundidade realista em expor como o jogo dos tronos era ou deveria ser jogado, mas nem por isso se deram bem por conhecerem, mais do que outros, as regras: Tyrion, Varys, Mindinho e  Meistre Aemon foram, na minha opinião, os personagens que propiciaram os diálogos mais importantes para quem, apesar das paixões, queria prestar atenção nas verdadeiras razões da guerra e, consequentemente, em como agir para sobreviver e se dar bem. O mais interessante é que não teve nenhum personagem, sejam os mais simples, quase figurantes de luxo, ou os mais importantes, que ficou "sobrando" na série. Cada diálogo, cada cena, por mais aparentemente insignificante para a história, teve importância, ou seja, não teve praticamente na "fora do lugar". A série não cometeu o "pecado" de muitas séries longas: "encher linguiça" para ganhar tempo para o desenrolar do enredo.

Conchavos inúmeros, batalhas épicas (dos Bastardos, a Grande Batalha contra o Rei da Noite), mortes brutais (Ned Stark, Joffrey, Oberyn, Ramsay), reis e rainhas, legítimos ou não (Robert, Stanis, Renly, Rob, Joffrey, Tommen, Cercei, Daenerys, John, Sansa, Bran),  filmados com impressionantes efeitos visuais, deram o tom eletrizante à história. Dragões, gigantes, zumbis, a grande muralha, foram apenas os temperos de um banquete que foi servido ao longo de anos.

Enfim, GOT é uma série que vai deixar saudades. Ainda bem que R. R. Martin prometeu que terminará a história dos livros - As Crônicas de Gelo e Fogo - com os volumes 6 e 7. Sem dúvida, e quem leu os livros concordará comigo, a história escrita é mais rica que a história filmada. Aliás, como o próprio Martin já falou, são duas formas diferentes de contar a mesma história. Quem sabe, no livro, o final seja diferente da série, pois, como afirmei no início deste post, o penúltimo episódio comprometeu o final da história, pois errou justamente na sua maior virtude, a coerência, pois foi muito mal construída a loucura e a morte da Rainha dos dragões e os fatos daí decorrentes, como a morte de Varys. De resto, o final da série foi interessante: Bran, o Quebrado, como rei de Westeros, algo inusitado, mas com lógica; John Snow exilado nas terras de além da muralha, inusitado, mas com lógica; Arya viajando para Oeste de Westeros, um final que combinou com o que ela se tornou, uma guerreira e não uma lady; Sansa como rainha do Norte, inesperado, mas combinando com a Matriarca Stark em que ela se tornou; Tyrion como mão do rei, esperado... enfim, um final tipo happy end é que, definitivamente, não combinaria...

Para terminar, registro, aqui, os meus tops da série:

- melhor herói: Rob Stark
- melhor vilão: Cercei Lannister
- mais odiado: Ramsay Bolton
- mais amado: John Snow
- personagem mais eletrizante: Daenerys Targarien
- personagem mais intrigante: Tyrion Lannister
- personagem mais inteligente: Lord Varys
- personagem "canção da América": Samwell Tarly
- personagem "bipolaridade": Theon Greyjoy
- personagem fidelidade: Brienne de Tarth
- personagem "menina maravilha": Lyanna Mormont
- melhor cena: Arya matando o Rei da Noite
- cena mais inesperada: Casamento Vermelho
- cena de tirar o fôlego: a retirada dos selvagens da praia das terras de além da muralha
- melhor casal: John Snow e Ygritte
- melhor reviravolta: Mindinho condenado à morte por Sansa
- melhor cena de empoderamento feminino: Daenerys queimando os chefes dos dhotrakis
- melhor luta: Gregor Clegane mata Oberin Martell
- cena mais triste: morte de Hodor
- cena mais impressionante: o dragão que se tornou zumbi
- melhor temporada: a quarta
e...
- personagem mais mais mais de tudo: ARYA STARK






domingo, 3 de fevereiro de 2019

tempo, celular e trânsito...


Há algum tempo tenho notado aqui em Maringá que há uma demora maior para os carros se deslocarem quando o sinal do semáforo fica verde. Matutando os motivos e para ver se realmente minha percepção batia com a realidade, elaborei a hipótese de que os motoristas, ao pararem nos semáforos, automaticamente levam às mãos os celulares (isto quando eles já não estão na mão) e, ao ver ou enviar mensagem, fazer ou receber ligação, acabam por se desconcentrar do trânsito e só se tocam que o sinal abriu quando os carros ao lado e/ou a frente começam a se deslocar. Para comprovar minha hipótese perguntei para algumas pessoas, especialmente motoristas de Uber, se eles também tinham a mesma impressão que eu e se eles também achavam que o causador da lerdeza dos motoristas eram os seus celulares. Bingo: eu estava certo! Claro que a ciência pede uma amostragem maior e outros meios de comprovar a hipótese, mas, para meus objetivos, meu estudo de campo é suficiente. Minha conclusão (que de forma nenhuma é original): as pessoas hoje em dia têm uma relação com o tempo em que elas se sentem premidas pela rapidez das informações, sejam elas quais forem...

Os smartphones vieram revolucionar a noção de tempo que temos, especialmente a dependência psicológica que temos do tempo. O WhatsApp potencializou essa revolução. Quando enviamos mensagem para alguém ficamos, mesmo que inconscientemente, ansiosos para que os dois risquinhos fiquem azuis para sabermos que a mensagem foi lida; depois, a ansiedade aumenta para que a pessoa responda nossa mensagem. Além disso, as pessoas que usam o "zapzap" fazem parte de grupos (de família, de amigos, de trabalho etc.), os quais consomem um tempo enorme em nossa vida e fazem com que nossa relação com o próprio tempo tenha mudado muito. Quando penso na velocidade instantânea das informações hoje em dia eu me lembro de uma passagem da vida dos jesuítas no século XVI: Xavier, o mais famoso dos missionários no Oriente, morreu em 2 de dezembro de 1552, mas encontramos uma carta dirigida a ele próprio, escrita em Roma por Inácio de Loyola, o superior geral dos jesuítas no mundo, datada de 10 de maio de 1553; ou seja, quase seis meses da morte de Xavier, Loyola ainda não sabia do fato. Para nós hoje essa informações soa um absurdo, mas para eles, à época, seis meses era o tempo esperado, no mínimo, para terem notícias recíprocas.

Mas, o que isto tem a ver com o trânsito hoje? Infelizmente, tudo!! As pessoas, no geral, não conseguem ficar sem olhar o celular um minuto sequer. Em salas de aula, em reuniões, nos bares e restaurantes, nas baladas, nas academias e, é claro, nos carros, as pessoas estão o tempo todo conectadas. Há uma necessidade, quase que incontrolável, de ler mensagens, ver fotos, assistir videos, enviar e/ou postar mensagens, fotos e vídeos. Claro que muitas pessoas usam o zapzap para trabalho, mas, creio que a maioria usa para, digamos, "fins sociais". Todos, portanto, estamos cada vez mais escravos do tempo mínimo, do tempo instantâneo; cada vez menos temos um tempo para pensar, elaborar, esperar...  Esta forma do tempo, filha direta, na minha opinião, da máxima capitalista "tempo é dinheiro", contribui para que neuroses, especialmente, as ligadas à ansiedade, aumentem exponencialmente nos nossos dias. E, isto sem falar que a comunicação virtual toma espaço da comunicação real, ou que uma boa parte dos assuntos da comunicação real advém dos conteúdos da comunicação virtual...

O grande problema do uso do celular, mais especificamente, das redes sociais, e mais especialmente o WhatsApp, no trânsito é a desatenção. Muitas matérias televisivas e propagandas de educação no trânsito alertam, vastamente, para os perigos do uso do celular no carro. No entanto, parece que não estão surtindo efeito, pois, cada vez mais motoristas estão de olho no trânsito e no celular, e quando os carros param no semáforo, os dois olhos se voltam para o segundo, atrapalhando, sobremaneira, o primeiro. O grande problema, na minha opinião, é que a tecnologia da comunicação que, como todas as outras, trouxe muitos benefícios, acabou por reduzir o tempo de comunicação a praticamente algo instantâneo e, assim, nossa relação com o tempo se torna, cada vez mais, uma espécie de prisão, sem grades, em que sacrificamos nossa liberdade...

PS: sugiro um documentário que está na Netflix intitulado Quanto tempo o tempo tem. É uma reflexão muito interessante e profunda sobre as mudanças que a sociedade tem hoje com o tempo.


quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Farmácias: templos de consumo...


Há algum tempo eu gostaria de escrever sobre as farmácias hoje em nossas cidades. Me chama atenção de como elas se tornaram verdadeiros templos de consumo, e não só de medicamentos. O exemplo mais exuberante para mim é uma farmácia recém inaugurada em Maringá que reproduz um templo budista (não vou citar o nome da farmácia para não fazer propaganda aqui). As construções que abrigam as farmácias, no caso as mais novas e que fazem parte de redes, são amplas, com pé-direito alto (uns 3 ou 4 metros), super bem iluminadas, que vendem doces, salgados, bebidas, cosméticos e, é claro, remédios também. As farmácias hoje são espaços convidativos para o consumo. Mas, só para mim parece estranho e sinal de preocupação esta relação com aquilo que deveríamos ficar contentes de não usar: remédios?

No começo do ano passado estive em Montevideo, em um congresso da minha área de atuação. Para além de conhecer um pouco do Uruguai pela primeira vez, e de ver coisas bonitas e interessantes, me chamou a atenção as farmácias que vi: prédios pequenos, acanhados, meio sombrios, tal como eram as farmácias há alguns anos aqui. Ir naquelas farmácias não dá prazer nenhum, muito ao contrário; ir nas nossas farmácias/templos hoje é um passeio normal. Em uma pesquisa realizada em 2018 pela plataforma Consulta Remédios concluiu-se que praticamente metade dos brasileiros se automedicam regularmente e que quase 80% da população já havia se automedicado naquele ano. Em artigo da revista Super Interessante de 2016, intitulado Viciados em Remédios, informa-se, de início que "A máquina de propaganda da indústria farmacêutica, a irresponsabilidade de muitos médicos e a ignorância dos usuários criaram um novo tipo de vício, tão perigoso quanto o das drogas ilegais: a farmacodependência".  O artigo mostra que no Brasil havia, em 2016, uma farmácia para cada 3 mil habitantes, simplesmente o dobro do que recomenda a Organização Mundial da Saúde; havia mais farmácias/drogarias (54.000) no Brasil do que padarias (50.000). Estamos muito mais hipocondríacos, conclui o artigo.

Eu penso que uma sociedade hipocondríaca é uma sociedade que cria cada vez mais doentes. Assim como o hipocondríaco enxerga riscos à sua saúde em qualquer coisa, a nossa sociedade cria as doenças e a indústria farmacêutica cria os remédios. A pessoa que é viciada em remédios é vítima de seus medos e da sua própria imaginação, tão vitima que tem prazer em acompanhar os últimos lançamentos farmacêuticos e não vê a hora de comprá-los. Mas, a pessoa hipocondríaca, assim como qualquer viciado, não tem consciência do seu vício e não se assume como viciada; ela acha que está no controle de sua vida e que só toma remédio para se proteger. A sociedade, cada vez mais doentia como a nossa, naturaliza a relação com os remédios e, para isto, transformou as farmácias de prédios sisudos em templos do consumo, em locais em que se entra com prazer e se compra um remédio assim como se compra um creme para as mãos, um chocolate ou um refrigerante. A alopatia cresceu exponencialmente nos últimos tempos, se tornou, como tantas outras coisas na nossa vida, uma mercadoria vasta, mais barata e de fácil acesso (vide, por exemplo, os remédios genéricos).

Longe de ser saudosista das tantas ervas e plantas que quando eu era criança minha mãe me dava para muitos males da época, acho mesmo que a tecnologia farmacêutica e terapêutica produziu remédios eficazes para muitas doenças hoje em dia. O problema, ao meu ver, é a confiança excessiva de que o uso de  remédios vai resolver os problemas de saúde atualmente. Muitos dos males que hoje afligem as pessoas estão ligados ao estilo de vida de hoje, em que se propala a meritocracia como ideologia de vida por um lado e a impossibilidade de conseguir se realizar plenamente por outro, porque o que nos define e nos limita é muito maior do que a nossa vontade individual.

Mas, o maior problema na minha opinião é que o novo formato das farmácias favorece um consumo desenfreado e prazeroso de algo que não deveria ser agradável em nossa vida. No entanto, como mercadoria que o remédio se transformou, seus agentes de consumo, as farmácias, se parecem, descaradamente, muito mais com lojas de shopping center do que, de fato, drogarias...

PS: me lembrei de uma história que uma amiga me contou de que ela e amigas estavam em um congresso anos atrás e uma delas, hipocondríaca, bateu em seu apartamento do hotel para pedir um remédio para dor de cabeça. Como minha amiga não tinha, ela perguntou se tinha algo para dor de estômago. Diante da segunda negativa, ela perguntou se havia algum remédio para enjoo. Ainda sem conseguir algum remédio ela perguntou se a minha amiga não tinha nada de remédio com ela. Minha amiga respondeu: "bem, de remédio, remédio, eu só tenho este colírio aqui". A viciada em remédios não se fez de rogada: "então, pinga duas gotas em cada olho por favor...".