quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Farmácias: templos de consumo...


Há algum tempo eu gostaria de escrever sobre as farmácias hoje em nossas cidades. Me chama atenção de como elas se tornaram verdadeiros templos de consumo, e não só de medicamentos. O exemplo mais exuberante para mim é uma farmácia recém inaugurada em Maringá que reproduz um templo budista (não vou citar o nome da farmácia para não fazer propaganda aqui). As construções que abrigam as farmácias, no caso as mais novas e que fazem parte de redes, são amplas, com pé-direito alto (uns 3 ou 4 metros), super bem iluminadas, que vendem doces, salgados, bebidas, cosméticos e, é claro, remédios também. As farmácias hoje são espaços convidativos para o consumo. Mas, só para mim parece estranho e sinal de preocupação esta relação com aquilo que deveríamos ficar contentes de não usar: remédios?

No começo do ano passado estive em Montevideo, em um congresso da minha área de atuação. Para além de conhecer um pouco do Uruguai pela primeira vez, e de ver coisas bonitas e interessantes, me chamou a atenção as farmácias que vi: prédios pequenos, acanhados, meio sombrios, tal como eram as farmácias há alguns anos aqui. Ir naquelas farmácias não dá prazer nenhum, muito ao contrário; ir nas nossas farmácias/templos hoje é um passeio normal. Em uma pesquisa realizada em 2018 pela plataforma Consulta Remédios concluiu-se que praticamente metade dos brasileiros se automedicam regularmente e que quase 80% da população já havia se automedicado naquele ano. Em artigo da revista Super Interessante de 2016, intitulado Viciados em Remédios, informa-se, de início que "A máquina de propaganda da indústria farmacêutica, a irresponsabilidade de muitos médicos e a ignorância dos usuários criaram um novo tipo de vício, tão perigoso quanto o das drogas ilegais: a farmacodependência".  O artigo mostra que no Brasil havia, em 2016, uma farmácia para cada 3 mil habitantes, simplesmente o dobro do que recomenda a Organização Mundial da Saúde; havia mais farmácias/drogarias (54.000) no Brasil do que padarias (50.000). Estamos muito mais hipocondríacos, conclui o artigo.

Eu penso que uma sociedade hipocondríaca é uma sociedade que cria cada vez mais doentes. Assim como o hipocondríaco enxerga riscos à sua saúde em qualquer coisa, a nossa sociedade cria as doenças e a indústria farmacêutica cria os remédios. A pessoa que é viciada em remédios é vítima de seus medos e da sua própria imaginação, tão vitima que tem prazer em acompanhar os últimos lançamentos farmacêuticos e não vê a hora de comprá-los. Mas, a pessoa hipocondríaca, assim como qualquer viciado, não tem consciência do seu vício e não se assume como viciada; ela acha que está no controle de sua vida e que só toma remédio para se proteger. A sociedade, cada vez mais doentia como a nossa, naturaliza a relação com os remédios e, para isto, transformou as farmácias de prédios sisudos em templos do consumo, em locais em que se entra com prazer e se compra um remédio assim como se compra um creme para as mãos, um chocolate ou um refrigerante. A alopatia cresceu exponencialmente nos últimos tempos, se tornou, como tantas outras coisas na nossa vida, uma mercadoria vasta, mais barata e de fácil acesso (vide, por exemplo, os remédios genéricos).

Longe de ser saudosista das tantas ervas e plantas que quando eu era criança minha mãe me dava para muitos males da época, acho mesmo que a tecnologia farmacêutica e terapêutica produziu remédios eficazes para muitas doenças hoje em dia. O problema, ao meu ver, é a confiança excessiva de que o uso de  remédios vai resolver os problemas de saúde atualmente. Muitos dos males que hoje afligem as pessoas estão ligados ao estilo de vida de hoje, em que se propala a meritocracia como ideologia de vida por um lado e a impossibilidade de conseguir se realizar plenamente por outro, porque o que nos define e nos limita é muito maior do que a nossa vontade individual.

Mas, o maior problema na minha opinião é que o novo formato das farmácias favorece um consumo desenfreado e prazeroso de algo que não deveria ser agradável em nossa vida. No entanto, como mercadoria que o remédio se transformou, seus agentes de consumo, as farmácias, se parecem, descaradamente, muito mais com lojas de shopping center do que, de fato, drogarias...

PS: me lembrei de uma história que uma amiga me contou de que ela e amigas estavam em um congresso anos atrás e uma delas, hipocondríaca, bateu em seu apartamento do hotel para pedir um remédio para dor de cabeça. Como minha amiga não tinha, ela perguntou se tinha algo para dor de estômago. Diante da segunda negativa, ela perguntou se havia algum remédio para enjoo. Ainda sem conseguir algum remédio ela perguntou se a minha amiga não tinha nada de remédio com ela. Minha amiga respondeu: "bem, de remédio, remédio, eu só tenho este colírio aqui". A viciada em remédios não se fez de rogada: "então, pinga duas gotas em cada olho por favor...".