quarta-feira, 11 de abril de 2018

Merlí - e os peripatéticos



Ficar muito tempo sem publicar algo aqui me gerou dúvidas quanto a sobre o que escrever. Pensei em rascunhar alguma coisa sobre a atual situação que rola no Brasil, em termos políticos, mas ficará para outra oportunidade. Hoje vou aproveitar que terminei mais uma série da Netflix para sobre ela escrever: Merlí. Uma série catalã basicamente centrada em um professor de Filosofia do Ensino Médio de uma escola pública que dá o nome à série.

Merlí é uma série que tem três temporadas, as duas primeiras com treze episódios cada uma e a terceira, e última, com quatorze episódios. É uma série que foge do padrão "hollywoodiano", como House of Cards, Homeland, Breaking Bad, ou mesmo Game of Thronos. Ela é produzida pela TV3 da Catalunha, e tem atores pouco conhecidos, como o protagonista  Francesc Orella, que fez inúmeros filmes, programas de TV e peças de teatro, mas que pouco chegam até nós. Aliás, é uma inciativa muito bacana da Netflix que compra e disponibiliza séries fora do circuito comercial, como,  em outro exemplo, Rita , uma série dinamarquesa também sobre uma professora de escola pública.

Talvez diferentemente de outras pessoas que assistiram a série penso que a sua grande virtude é construir uma trama complexa com personagens igualmente complexos. É verdade que o mote é um professor de Filosofia que, numa didática diferente do convencional, consegue fazer com que seus alunos (os seus peripatéticos, como ele chama a turma, em clara referência a Aristóteles) passem a ser questionadores do atual estado social, cultural, religioso, econômico e político. A Filosofia se torna, como sempre deverá ser, instrumento para tornar as pessoas críticas, com o passeio que o professor Merlí Bergeron faz de seus alunos com Platão, Aristóteles, Agostinho, Plotinho, Marx, Hegel, Nietzsche, Smith, Sartre, Zizek, Baumann, dentre outros. Eu, como sou formado em Filosofia e trabalho as disciplinas Fundamentos Filosóficos da Educação na Antiguidade e Medievalidade no curso de graduação em Pedagogia, posso atestar que a forma como os filósofos são apresentados faz jus aos seus pensamentos. E, mais, o planejamento de Merlí, um tanto anárquico, não apresenta os filósofos em uma ordem cronológica, ele os introduz de acordo com o tema que quer trabalhar; assim, de Platão ele vai a Maquiavel, depois a Baumann, volta para Epicuro, avança para Heidegger, volta a Socrátes... de uma forma muito bem elaborada e com um sentido lógico. Mas, o mais interessante é que, independente do filósofo,  o professor sempre faz a relação do seu pensamento com as questões da atualidade, pois, dessa forma, os alunos conseguem dialogar com diferentes filosofias e, essencialmente, dialogar com eles mesmos.

Merlí é um personagem humano, pois ele não é idealizado como senhor das virtudes, pois apresenta vários defeitos, pelos quais, inclusive, as vezes paga preço alto. Seus alunos vivem, cada um, vidas complicadas, com várias experiências e famílias que dão um toque por vezes dramático ao enredo. Foi muito bonito e emocionante acompanhar a vida deles e de como cada um, a sua maneira, foi tentando resolver seus problemas. Questões próprias da nossa sociedade no que diz respeito à juventude são tratadas de forma aberta, como drogas, sexo, homossexualismo, racismo, mãe solteira, suicídio, morte etc.. A escola pública, bem como os problemas das pessoas que dela dependem, também são mostrados de forma bem realista, apresentando que, num mundo dominado pelo capital, dominado pelos interesses políticos de grupos que têm projetos de poder e não de governo, quem sofre são os despossuídos e as instituições que do governo dependem, e isto em um país de primeiro mundo.

Enfim, recomendo esta série a todos aqueles que querem passar várias e várias horas assistindo um enredo cheio de nuances, que foge ao maniqueísmo, com personagens fortes, com histórias pessoais que se entrelaçam em outras histórias e que nos faz rir, ficar com raiva, torcer e chorar. O último episódio é particularmente emocionante, mas não vou aqui dar spoiler.

"Me llamo Merlí... y quiero que la filosofía os haga 'trempar' (se excitar)"