domingo, 27 de setembro de 2015

Sobre o tempo e os tempos


É muito comum a percepção de que nos últimos anos o tempo parece estar passando mais depressa do que antes. De fato parece mesmo, pois os dias, semanas, meses e anos parecem "voar". Pessoas com mais idade, que viveram nas décadas de 50 a 80 do século passado, são "prova viva" de que realmente o tempo parece estar passando mais depressa. No entanto, todos sabemos que o tempo em si continua o mesmo, pois um ano continua durando 365 dias, um dia continua durando 24 horas e assim por diante. Ou seja, a conclusão mais do que óbvia é que não é o tempo realmente que está passando mais depressa, mas a forma como nos relacionamos com ele é que sofreu e sofre mudanças. Não há um tempo, mas há tempos, pois ele, o tempo, tem um sentido humano, tem um sentido histórico, apesar de sua natureza.

Hoje em dia nossa relação com o tempo é quase neurótica, senão totalmente neurótica. Num mundo em que a comunicação a distância é absurdamente imediata não admitimos tempo entre o envio da mensagem e a sua resposta. Estamos numa época que nos massacra do ponto de vista da comunicação entre as pessoas, pois, depois do advento especialmente do whatsapp, sem falar do facebook e de outras redes sociais, a ansiedade na resposta a nossas mensagens é automática; se a pessoa demora 5 minutos para responder, uma série de sentimentos são mobilizados, todos potencializados pela ansiedade. Ficaram para a história outras formas de comunicação, como as cartas, os cartões-postais e, mais surpreendente, os e-mails, os quais, na minha opinião, estão fadados a se tornarem, em breve, "peças" de museu, lembranças de algumas pessoas. Não havia ansiedade relacionada a essas formas antigas de comunicação? Claro que sim, pois só quem escreveu uma carta de amor, colocou no correio e esperou a resposta que sabe a ansiedade sentida; no entanto, a ansiedade era de acordo com o tempo calculado para chegar a resposta e, portanto, não era imediata, não era absurdamente imediata como hoje em dia. Falando em carta, sempre me vem a mente as cartas jesuítas trocadas entre aqueles padres no século XVI: um deles mais famoso foi Francisco Xavier, que se tornou famoso como missionário no Oriente; ele morreu no início de dezembro de 1552 em Sanchoão, às portas da China; imediatamente foi escrita um carta com a triste notícia endereçada ao seu superior e amigo Inácio de Loyola que estava em Roma; o interessante, do ponto de vista da demora das cartas, é que existe uma carta de Loyola para Xavier escrita em maio de 1553; portanto, seis meses após a morte de Xavier, Loyola ainda não tinha recebido a notícia. Eram outros tempos e outra forma de se relacionar com o tempo.

Eu acho que um fato relevante para a mudança que se teve com relação à percepção da velocidade do tempo ocorreu com a popularização da televisão, pois, a partir daí, o tempo reservado a conversas na família e entre as famílias vizinhas passou a ser ocupado em frente à TV. A ansiedade gerada pelos próximos capítulos das novelas já deve ter alterado a percepção do tempo. E daí por diante, os meios de comunicação foram se tornando cada vez mais rápidos. Hoje o que representa a velocidade da comunicação e a intensidade da ansiedade, ansiedade que é responsável, um última análise, pela idéia de que o tempo passa mais rápido, é o whatsapp. Tal é a dependência deste meio que, em salas de aula, em palestras, em reuniões de grupos de estudo, em bares etc., cada vez mais as pessoas não conseguem ficar sem olhar seus celulares e, é claro, desviar sua atenção do professor, do palestrante, do assunto, da conversa etc. A neurose parece aumentar de forma implacável e a ansiedade, cada vez mais potencializada, faz com que não sintamos mais o tempo; assim, é claro, o tempo realmente parece passar mais rápido. É o nosso tempo, é a forma como nos relacionamos com ele que acelera. Talvez seja por isso que hoje em dia cada vez menos as pessoas querem usar o tempo para curar feridas, para fazer os seus lutos, para aprender com a vida. A vida é cada vez mais intensa, o tempo, ou o nosso tempo, corre junto, cada vez mais rápido...

Para terminar, quero deixar aqui duas breves citações de duas perspectivas de se relacionar com o tempo que gosto muito, uma de Eclesiastes e outra da Legião Urbana, que poderiam servir de antídoto contra a ansiedade e a neurose modernas:

"Para tudo há uma ocasião, e um tempo para cada propósito debaixo do céu:
tempo de nascer e tempo de morrer,
tempo de plantar e tempo de arrancar o que se platou,
tempo de matar de tempo de curar,
tempo de chorar e tempo de dançar,
tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las,
tempo de abraçar e tempo de se conter,
tempo de procurar e tempo de desistir,
tempo de guardar e tempo de lançar fora,
tempo de rasgar e tempo de costurar,
tempo de calar e tempo de falar".
(Eclesiastes, 3:1-7)


"E há tempos
Nem os santos têm ao certo
A medida da maldade
E há tempos são os jovens
Que adoecem
E há tempos
O encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
Só o acaso estende os braços
A quem procura
Abrigo e proteção"
(Há Tempos - Legião Urbana) 



quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Salários de vereadores


Acho que a maioria das pessoas está acompanhando a verdadeira onda em cidades brasileiras para diminuir os salários dos vereadores. O movimento, que se espalha rapidamente, começou na cidade de Santo Antonio da Platina onde, após forte manifestação popular, os edis, além de não aumentarem os salários como pretendiam, acabaram por diminuí-los drasticamente, passando de pouco mais de 4 mil reais para menos de mil reais por mês. Pois bem, o que parece algo progressista, o que parece ser algo que mobiliza positivamente a população, é, na minha opinião, um engodo, um erro político muito grave. Vou tentar argumentar por que.

Primeiro, com salários bem baixos, a possibilidade da corrupção aumentar drasticamente é concreta. A menos que as pessoas acreditem em contas de fadas, a redução drástica dos salários não irá transformar os vereadores em cidadãos perfeitos e cumpridores de suas tarefas com abnegação. Continuaremos a eleger corruptos que se sentirão mais "livres" para se venderem, pois não terão nem a desculpa de que já ganham bem para o exercício do seu trabalho.

Outra questão diz respeito ao fato de que, com salários na casa dos mil reais, qual trabalhador que poderá se candidatar a vereador? Que pessoa da classe baixa ou da classe média baixa poderá se dar ao luxo de exercer, com decência, um mandato de vereador se terá que trabalhar 40, 50 ou 60 horas por semana? Somente empresários, profissionais liberais bem sucedidos é que poderão, de "forma abnegada" exercer um mandado. A representação dos trabalhadores vai diminuir drasticamente. Isto é bom para a democracia representativa? Acho que não.

Concordo, no entanto, que tem vereador ganhando muito Brasil afora. Salários que comparados, por exemplo, com os de professores municipais são descaradamente maiores. Há, sim, que se colocar um limite para os salários, limite que deveria ser o que impediria que a pessoa se torne um político profissional. O que importa, para mim, é que a reação das pessoas aos salários dos vereadores mostra a descrença quase generalizada em que os políticos caíram na atualidade. Eles deveriam pensar sobre isto, não só os vereadores, mas todos os políticos, pois a paciência das pessoas está acabando. Mas, infelizmente, a forma que a revolta da população assume é somente moralista, atacando o efeito mas não a causa.

Volto a insistir, como já o fiz aqui outras vezes, em que mais do que diminuir drasticamente os salários, nós deveríamos estar lutando para acabar com a reeleição dos vereadores, dos deputados e dos senadores. Aí sim, sem a possibilidade de se profissionalizar na política, os vereadores poderiam fazer jus a um salário digno de sua importante função.




sexta-feira, 10 de julho de 2015

SimplesMENTE


A vida flui, nunca e sempre é a mesma
Pessoas vem e vão, chegam, ficam e saem
Coisas mudam e coisas permanecem
Somos rompimento e continuidade


A vida é assim, nunca e sempre é a mesma
Chegamos perto, às vezes colamos
Nos afastamos, às vezes para bem longe
Agregamos e dispersamos, juntamos e espalhamos


A vida flui, sempre e irreversivelmente
Experimentamos, gostamos, ficamos e desistimos
Temos coragem para o novo e o velho nos mete medo
Temos medo do novo e coragem de o velho enfrentar


A vida é assim, sempre e irreversivelmente
Se nela prestamos atenção, ela nos cobra
Se a ela damos ouvidos, nos sussurra e nos grita
Se a levamos a sério, brincadeira viramos


A vida flui, sem métrica e sem lógica
A vida é assim, com lógica e com métrica
A vida é assim, ganhamos e perdemos
A vida fui, perdendo ou ganhando


Perder é irreversível
Ganhar, às vezes, é possível!!



quarta-feira, 17 de junho de 2015

Reforma política para "inglês ver"

(Este artigo, de minha autoria,  foi publicado hoje, dia 17/06/2015, no jornal O Diário de Maringá, e aproveito para registrá-lo aqui no blog)


Neste espaço precioso quero refletir sobre dois pontos acerca do projeto de reforma política que está sendo debatido no Congresso Nacional. O primeiro é sobre o que já foi objeto de votação e o segundo é a reforma em si.

Os deputados já decidiram acerca do sistema político do "distritão", do fim da reeleição para o Executivo e financiamento privado das campanhas. Vou me ater aqui em relação ao fim da reeleição para os cargos executivos: parece-me que atendeu a uma realidade, pois as campanhas para um segundo mandato consecutivo resultou, em boa parte dos pleitos, em escaramuçar a realidade vivida no primeiro mandato, não assumindo os problemas, para que o segundo mandato fosse possível e até facilitado; as últimas eleições, no Brasil e no Paraná, provaram esta tese. No entanto, parece que nem entrou na pauta o final da reeleição para os cargos no Legislativo. Por que será? Seria esperar demais dos nossos nobres deputados e senadores "cortarem a própria carne"? Pelo jeito das coisas, parecem que sim.

Qual o argumento para acabar com a reeleição para o Executivo que não vale também para o Legislativo? Confesso que estou cansado de ver vereadores, deputados estaduais, federais e senadores com três, quatro, cinco ou mais mandatos consecutivos. Todos sabemos, ou talvez fingimos não saber, que quem já possui mandato tem muito mais chance de ser eleito novamente do que os outros, pois, seja qual cargo for, sempre tem a verba de representação que é utilizada para contratar pessoas, as quais, boa parte delas, já começam a trabalhar para a reeleição do seu patrão anos antes da eleição. Penso que, para soluções de continuidade, poderia ser permitido dois mandatos consecutivos apenas para o legislativo, menos para senador, pois 8 anos de mandato já é tempo suficiente; mais do que isto vira, de fato, profissão e não, como todos eles dizem quando são candidatos, um serviço para a comunidade.

Quanto ao aspecto geral da reforma política, o que me preocupa é que nossos congressistas não criaram mecanismos de efetiva participação popular. Parece que não interessa ouvir a sociedade, especialmente aquela que se organiza para além de partidos políticos, no que diz respeito ao o que ela entende e quer que seja, de fato, reformado em nosso sistema político. O professor da Universidade de São Paulo (USP), Massimo di Felice, defende a tese de que a democracia representativa é a grave crise da própria democracia, na medida em que a população em geral só participa da política quando vota nas eleições e, depois, deixa as decisões para os eleitos, se isentando de qualquer responsabilidade pelo que os eleitos fizerem. Basta fazer uma pesquisa com as pessoas se elas se lembram em quem votaram nas três últimas eleições. A maioria deve responder que não. O problema é que o desinteresse das pessoas em geral, possibilitada pela eleição de representantes, acaba sendo oportuna para os eleitos, os quais, com o argumento dos votos que receberam, não se sentem na obrigação de perguntar para a sociedade como deveriam votar e, especialmente, prestar contas de tempos em tempos de suas atividades políticas. É uma via de mão-dupla o desinteresse, que interessa muito mais aos detentores de mandatos que exercem seus cargos praticamente de forma imune.

Quanto ao título do artigo, a expressão "para inglês ver" surgiu na primeira metade do século 19 no Brasil quando a Inglaterra exigiu que se aprovassem por aqui leis que proibissem o tráfico de escravos. Como todos sabiam que as leis não sairiam do papel e, portanto, não seriam cumpridas, surgiu a expressão, tão infeliz quanto verdadeira!


sábado, 23 de maio de 2015

Bem x Mal - as crianças de ontem e as de hoje

"Como os tempos atuais são diferentes dos da minha infância". Pessoas na minha faixa etária dizem com freqüência esta frase, e eu, é claro, também o afirmo. Até porque é pura realidade e verdade. As brincadeiras são diferentes, a liberdade (ou a falta dela) é diferente, a inocência é mediatizada por outras coisas, enfim, a diferença realmente é muito grande. "Como a gente era mais feliz antes", "na minha época havia melhores valores", "hoje em dia está bem pior do que antes", são frases que também ouvimos muito por aí dos mais velhos, incluindo aí os acima de 40 anos. A percepção das gerações anteriores normalmente, arrisco a dizer que em toda a história, é a de que as geração posteriores estão vivendo de forma pior, mais despreparada, mais perniciosa, dentre outros adjetivos mais depreciativos. Acho que para algumas coisas sim, as gerações têm razão em seu julgamento das novas, mas, para outras, me parece que é puro lamento de quem vê a morte mais perto do que a vida. Mas o que isto tudo tem a ver com o título deste post? Eu quero refletir hoje sobre a percepção do bem e, especialmente, do mal, para as crianças de hoje e, é claro, pensar em como a minha geração foi formada neste aspecto.

Para falar da minha época vou relatar, com um pouco de receio, um fato acontecido comigo. Eu tinha 15 anos quando assisti ao filme O Exorcista, e foi com certeza um dos momentos da minha vida em que mais senti medo, a ponto de, com aquela idade, tomar a decisão vexatória de dormir no quarto de meus pais, além de, depois, no meu quarto, dormir com a Bíblia debaixo do travesseiro por mais de um mês. Depois de um tempo, alguns anos mais tarde para falar a verdade, eu refleti sobre o meu medo da época e conclui que se tratava de uma potencialização do temor do diabo quando ele possuiu a menina no filme, personificando, de certa forma, o mal, ou os seus efeitos. Na minha época de infância e adolescência tanto Deus como o diabo eram apresentados com tintas fortes, um como vigilante de tudo, especialmente das ditas "coisas ruins" que todo adolescente faz, e o outro como aquele que está esperando um deslize para se apossar da alma. O maniqueísmo, portanto, era extremamente forte, e a pedagogia do medo funcionava muito bem naquele ambiente religioso cristão. Tal concepção da existência de forças do bem e do mal perpassava as histórias infantis, nas quais sempre havia a personificação do bem (Cinderela, por exemplo) e a sua contrapartida do mal (Madrastra da Cinderela, no mesmo exemplo); aliás, praticamente todas as histórias infantis tinham o mesmo esquema psicológico e o final, a moral da história, teria que ser a vitória de quem era do bem contra quem representada ou personificava o mal. Assim, madrastas, bruxas, lobos, ogros, tinham, necessariamente, um final funesto, mas, para engrandecer o bem, eles existiam, eles estavam lá, prontos para "devorar" sua alma.

Hoje em dia, de alguns poucos anos para cá, talvez desde Deu a Louca na Chapeuzinho e Shrek, os filmes infantis ganharam uma outra tônica, um outro esquema psicológico e, consequentemente, viraram do avesso o maniqueísmo existente na mentalidade religiosa da sociedade. Talvez o filme que melhor expresse esta reviravolta foi Malévola, o mais recente desta onda de filmes que invertem os papeis e nos apresentam bruxas, lobos, ogros, madrastas que não são maus e até, pelo contrário, são divertidos, boas-praças e, portanto, adoráveis. O filme Malévola, na minha opinião, sintetiza muito bem tal inversão: aquela que sempre foi a fada má, a invejosa, a preterida, transformou-se na mulher exuberante, que amou e foi traída em seu amor, aquela que cuidou da princesa e lhe mostrou um mundo diferente, mais sensível, mais mágico, do que os frios muros do castelo. Como não ficar do lado da Malévola contra o rei oportunista? Estamos vivendo hoje um momento especial na formação de nossas crianças e adolescentes. Eles não estão mais sendo encerrados em esquemas quadrados, que anteriormente às coisas as definem para sempre; eles não estão mais sendo dicotomizados entre o bem e o mal, entre Deus e o demônio; eles têm mais liberdade para decidir as coisas e viver num mundo em que tudo é sempre mais complexo do que esquemas redutores; eles não têm que ficar mais na espreita de encontrar, "cara a cara", como uma imagem demoníaca, que serviu para criar boa parte do superego existente nas pessoas.

É claro que nem tudo são flores... Ter mais liberdade, não ter sido criado num esquema que reduzia, e portanto facilitava, a realidade a dois polos visíveis e palpáveis, trás muito mais responsabilidade de fazer as coisas certas. O bem e o mal existem, pois existem coisas boas e coisas ruins, atitudes boas e ações más, pessoas que fazem o bem e pessoas que fazem o mal, e, portanto, nosso mundo não está imune dos perigos, muito pelo contrário, eles estão aí cada vez mais próximos, pois os perigos são trazidos por gente de carne e osso, e não por espíritos atormentados e atormentadores. É preciso, mais do que nunca, aproveitar a liberdade psicológica e moral que as crianças estão tendo para conversar com elas, para dar o exemplo de que, fundamentalmente, quando se pensa no outro, no seu bem, quando se respeita o espaço do outro, o espaço público, quando se trata bem as pessoas, independente de sua condição social, aí sim estamos fazendo e ensinando a fazer o bem. O contrário disto, o egoísmo, os preconceitos de raça, credo, políticos, de gênero etc., estes sim, são as atuais personificações do mal. Ensinar a fazer o bem é, antes de tudo, dar o exemplo!!!

Ah, quanto ao filme O Exorcista, confesso, meio envergonhado, que nunca mais consegui assisti-lo, e este é um dos desafios que trago desde então para minha vida.



Sobre a fluidez da existência humana - a história do homem que virou lesma.

(microconto livremente, e pretensamente, inspirado em Kafka)


A vida lhe parecia cada vez absurda de ser vivida. O vazio das relações, a busca frenética por prazer e felicidade em cuja roda frequentava, causava-lhe cada vez mais desilusão, e o futuro incerto e cada vez mais sem sentido fizeram-no entrar num estado de torpor, de solidão, mesmo tendo a companhia de um sem número de pessoas, de tal forma que ele, lentamente, se transformou em uma lesma. Isto mesmo, quando se deu conta estava gosmento, rastejando pelo chão de sua casa. Mas, como era uma lesma de tamanho considerável, como nunca antes se tivera notícia, conseguia, além de rastejar no chão, subir no sofá de sua sala e em sua cama. Na verdade, demorou um pouco para ele se perceber lesma. Uns dois dias depois da brutal e surpreendente transformação é que ele se olhou no espelho e se viu assim: uma horrorosa lesma!!!

O impacto que ele teve foi profundo. Ficou atordoado e sem saber o que fazer. Tentou ligar para alguém no seu celular ou entrar na internet para fazer alguma pesquisa se existia caso semelhante que teria sido documentado, mas se deu conta que não tinha mais mãos, braços, ou mesmo pernas e pés. Ele finalmente tinha se dado conta de que tinha se transformado numa lesma nojenta. Seus amigos ligavam para ele para combinar uma saída em algum boteco mas ele não conseguia atender o celular, o qual, depois de um tempo se calou porque acabou a bateria. Os amigos acharam que ele tinha viajado sem falar para ninguém e os poucos que tentaram ir ao seu apartamento ficaram no interfone, pois ninguém atendia; claro, como uma lesma iria apertar o botão do interfone? Além do que, logo logo, ele se percebeu também sem voz.  Seus amigos pensavam que não tinha acontecido nada de mau com ele, pois, como diz o adágio popular, "notícia ruim corre depressa...". Mas, nem correr ele podia agora, pois alguém já viu uma lesma correndo??

Com o tempo ele começou a se habituar com sua situação, especialmente depois que passou a ter a companhia de outras lesmas, estas originais, de tamanho original, muito menores que ele portanto, mas que, não se sabe direito como, se pelo fato dele ser uma lesma também, eles podiam conversar entre si. As outras lesmas, as autênticas, não metamorfoseadas, viram nele uma espécie de um deus-lesma, pelo tamanho obviamente, mas como ele não estava acostumado com o mundo delas, foi instruído em como deveria proceder para continuar vivendo. "Se afaste do sal, ele é mortal para nós", alertaram-no, e, também, descobriu porque a iluminação forte o incomodava. Soube, também, pelas suas novas amigas, que o tempo médio de vida de uma lesma é de 3 anos, mas que, concluíram depois de muito confabular, que ele deveria durar muito mais dado ao seu tamanho. Enfim, passou a viver com suas amigas lesmas e trocaram informações sobre os mundos diferentes de onde tinham vindo.

Certo dia, porém, as coisas mudaram. Depois de muito pensar sobre sua existência quando humano, de suas relações amorosas, de amizade e familiares, depois de muito refletir, já que agora o tempo lhe sobrava para isto e as conversas com as outras lesmas nem sempre eram frutíferas, sobre temas como felicidade, prazer, amor, profissão, paz, e sobre o que considerava os vícios e as virtudes humanas, concluiu que sua existência como humano, por mais sem sentido que lhe parecia, estava ligada à existência das outras pessoas, mesmo aquelas que não lhe eram próximas. Passou a ter uma percepção de que ele dependia dos outros e os outros dependiam dele, e que isto ocorria com todos e, portanto, se sentiu novamente pertencendo à humanidade. Se esforçou para entender que parte, talvez uma boa parte, de suas neuras, seus cansaços, seus vazios, suas indecisões, seus medos e seus fantasmas não eram seus somente, mas pertenciam à sua época. Ele os sentia como sendo seus, e assim era, mas passou a senti-los como sociais também, além de individuais. "O ser humano é muito complexo!!", concluiu ele. Também concluiu que parte das frustrações que ele tinha quando era humano devia-se ao fato de que ele não conseguia se enxergar como uma espécie de pessoa coletiva, pessoa sim, com toda a sua individualidade, mas coletivo também, pois não estava imune ao que ele tentava responder como espécie de imperativos sociais. Concluiu que o caminho, inseguro e arriscado é certo, seria, no caso de um ser humano (que ele não era mais), fazer um esforço de retirar de sua frente tudo o que o atrapalhava de se enxergar de fato, até que restasse, apenas (e este apenas com muitas aspas) ele próprio, para, a partir daí, repensar sua vida, seus limites e suas ambições e, quem sabe, achar um espaço que ele poderia chamar de felicidade.

Enfim, como eu ia contando, depois de pensar sobre tudo isto algo lhe aconteceu: um dia ele acordou como humano novamente. Também demorou a se perceber como humano, não se dando conta que estava com mãos, braços, pernas e pés novamente; depois de uns três dias mais ou menos ele, se arrastando em frente ao espelho, se viu como ser humano e se flagrou numa posição absolutamente constrangedora, mas agora, pelo menos, sem deixar rastros gosmentos por onde passava. Voltou à sua vida, reencontrou seus amigos e familiares, mas não teve coragem de contar nada para nenhum deles, apenas para uma amiga que tinha ficado muda sem explicação biológica nenhuma. Tem sempre lembranças de quando era lesma e das coisas que fazia, especialmente das suas amigas lesmas, as quais, quando ele se tornou humano novamente, não titubeou em nelas jogar sal...


PS: obrigado à Fabi, pois de uma conversa com ela saiu a ideia do post.


Fotos, selfies e egocentrismo



Hoje quero escrever sobre algo que vem me incomodando desde a chegada da era das fotos digitais, e que se tornou mais agudo com a chegada dos smartphones e paus-de-selfie: em eventos públicos, como casamentos, batizados, primeiras comunhões etc., as pessoas estão passando do limite do razoável comportamento que se espera de gente educada.

Antes do advento das câmeras digitais (os mais antigos vão lembrar!!) utilizavam-se os filmes, de 12, 24 e 36 poses (fotos), e, como havia um duplo custo, o do próprio filme e o da revelação posterior das fotos, quem possuía câmeras tinha que se conter mais para aproveitar os melhores ângulos e ter o mínimo de certeza de que a foto tinha ficado ao menos razoável, ou seja, tinha que ter certeza que não tinha tirado foto do chão, do teto, fotos em movimento etc. Consequentemente, não havia tantas pessoas tirando tantas fotos ao mesmo tempo nos eventos sociais. Mesmo nas viagens de turismo, tinha-se que escolher bem os locais, ângulos, pessoas, para não desperdiçar dinheiro. Com o advento da tecnologia digital e o seu barateamento, muitas pessoas passaram a ter tais dispositivos e, consequentemente, a usá-los com muito mais freqüência, pois o custo se reduziu ao próprio equipamento e, quando muito, à revelação somente daquelas fotos que se escolheu.

A máquina digital foi um avanço tecnológico muito bacana, servindo para muitas coisas além da própria diversão. No entanto, alguns inconvenientes surgiram... Quem tinha, nessa época, crianças em pré-escolas, vai se lembrar das festas de fim de ano ou das festas juninas em que pais, tios, avós se acotovelavam para tirar fotos de suas crianças, ficando na frente dos outros e impedindo as pessoas, especialmente aquelas que não poderiam se levantar, de assistir plenamente as apresentações. Mesmo a iniciativa das escolas de contratar profissionais para tirar fotos não impedia que alguns "desavisados", individualistas e egocêntricos, continuassem a ficar na frente da platéia para tirar fotos dos filhos, que, vendo o exemplo dos pais e parentes, possivelmente se tornaram, também, egocêntricos.

O passo seguinte na tecnologia digital foi os celulares com câmeras e, depois, os smartphones  acoplando a máquina fotográfica com as redes sociais para que se publique, quase que instantaneamente, as fotos tiradas. Até aí tudo ótimo, pois realmente é uma brincadeira legal tirar uma foto e imediatamente publicar nas redes, além do que pode ser utilizado de forma séria, como ajudas públicas, em diferentes circunstâncias. No entanto, novamente os inconvenientes surgiram e, porque não dizer, aumentaram. Agora não só em festas em escolas de Educação Infantil, mas, também, em igrejas, parece que as pessoas não conseguem se conter em, deliberada e egoisticamente, atrapalhar as pessoas que teimam em ficar sentadas e serem educadas. Dois casos que me permito contar aqui que eu vivenciei: um casamento de uma amiga em que uma convidada estava com um pau-de-selfie e não se constrangia em tirar fotos da família toda, e isto dentro de uma igreja que deveria ser um local, talvez um dos últimos, a ser respeitado; e na primeira comunhão de minha filha em que na hora dela receber a hóstia uma mãe de outra criança entrou na minha frente (eu estava sentado!!) e me impediu de ver. Não duvido que, em plena igreja, estas pessoas resolveram enviar para as redes as fotos recém-tiradas, tipo o "em cima do lance"!! Nos casamentos em geral parece que todos os convidados resolvem erguer seus celulares para tirar sua fotos das núpcias. Fico me perguntando se quem assim procede consegue ver as cerimônias de um ponto de vista, digamos, holístico, ou só prestam atenção no detalhe que mais interessa para a foto??

O que me preocupa é o quanto deste comportamento é revelador da sociedade com um todo. Ainda estamos sendo, com a desculpa de que queremos e temos liberdade de registrar os fatos, egoístas, mal-educados e egocêntricos. Que exemplo estamos passando para a próxima geração? Que o espaço público deve ser usado de forma privada? Poderia apostar que as pessoas que agem desta maneira nas cerimônias, com seus celulares de última geração,  o fazem também no trânsito, nas calçadas, em todo o espaço público. Acho que temos muito ainda a caminhar na direção de um verdadeiro pacto social...


Super-heróis e super-vilões


Está voltando à moda os filmes de super-heróis, agora reunidos como Os Vingadores. Há algum tempo venho refletindo sobre este tipo de filme e o que encanta em nós vermos personagens com poderes especiais que assumem a tarefa de serem os defensores da humanidade. É claro que o aspecto do fantástico, do impensado, aliado, hoje, com recursos tecnológicos surpreendentes, faz deste gênero de filme deixar os espectadores boquiabertos. Eu, como fã do gênero ficção científica, adoro os filmes de super-heróis, desde, aliás, os primeiros episódios de Superman; aliás, para ser justo, desde os super-heróis japoneses como Ultraman e Ultraseven. No entanto, apesar de tudo isto, tem dois aspectos que chamam a atenção nestes filmes: a existência do super-vilão e a desconsideração pela vida humana.

Os filmes de super-heróis têm um esquema psicológico baseado na moral maniqueísta, potencializada, é claro, como um super-bem tendo o seu contraponto no super-mal, ou seja, para cada super-herói existe o super-vilão. O superman tinha o seu rival Lex Lutor; o Batman tinha o Pinguim, o Charada; o Homem-Aranha tinha o Duende Verde, o Dr. Octopus; Os Vingadores têm Loki, Ultron; os X-Man têm cada um o seu rival adequado. Enfim, cada super-bom tem o seu super-mau, que protagonizam lutas épicas, nas quais, geralmente, o futuro da humanidade e do planeta Terra está em risco. Assim, o problema de querer ter um super-herói para nos defender é que, com ele, vem sempre um ser malvado que também é super, que também tem poderes extraordinários, e que portanto, potencializa ainda mais a nossa fragilidade humana.

A existência do super-vilão, como contraponto necessário do super-herói, acarreta um complicador a mais mostrado nos filmes: a desconsideração da vida humana. Em várias super-batalhas prédios são destruídos, carros são amassados e jogados longe, pontes são pulverizadas, florestas são queimadas... e eu sempre me pergunto: não têm pessoas nos prédios, nos carros, nas florestas? Claro que sim, mas a vida humana não conta nestes filmes, nem se faz estatísticas de quantos simples mortais, como nós, perderam sua vida em meio à luta dos super; o que importa é que, mesmo com toda a destruição e, sub-repticiamente com todas as mortes, o super-herói venceu e nos livrou do grande mal que ameaçava toda a humanidade, pois, ainda sub-repticiamente, o que são as vidas perdidas em uma cidade (normalmente populosa) quando o que o super conseguiu foi salvar a humanidade com um todo?

Enfim, ainda bem que super-heróis só existem mesmo nos gibis, nas telas dos cinemas e na televisão, pois seria uma verdadeira desgraça se eles, de fato, fossem reais, pois aí teríamos que conviver, também, com os super-vilões, deixando no ar um sentimento de fragilidade da vida humana e de dependência do extraordinário para vivermos, e que, fatalmente, abriríamos mão de nossa liberdade para que novos e modernos leviatãs nos conduzissem como seres incapazes de, por nossas próprias mãos, fazermos nossa história.

Como nossos super-heróis e nossos super-vilões só existem num mundo mágico, numa esfera mítica, que eles continuem suas super-lutas, nos emocionando e nos fazendo torcer para que, pelo menos lá, o bem sempre vença o mal... custe o que custar!!




Livros para colorir

Depois de um tempo volto a escrever aqui e, para quem sentia falta, este é o primeiro de cinco posts que escrevi na seqüência. Aguardem os outros para bem breve.


Depois dos livros de auto-ajuda, que aliás continuam muito bem vendidos, o atual sucesso "editorial" são os livros para colorir. Somente os livros Jardim Secreto e Floresta Encantada  já venderam juntos mais de 1 milhão de cópias no Brasil. Será que o apelo por este tipo de "leitura" é algo espontâneo ou responde a um tipo de comportamento social? Assim como os livros de auto-ajuda, que são sucessos editoriais por responderem a anseios da população em encontrar auxílio para sair de crises e se dar bem pessoal, social e profissionalmente, os livros para colorir devem estar ligados a algum tipo de vazio existencial presente, em abundância, na atualidade.

Não sei se meus leitores já viram, ou provavelmente alguns já até compraram, os livros para colorir, mas, o fato, é que são boas edições, com desenhos minuciosos e com muitas páginas. Os livros são vendidos com antiestresse em meio à agitação do dia-a-dia e para que as pessoas se desliguem um pouco da TV e das redes sociais, e como um remédio para a nomofobia, dificuldade que as pessoas têm de se desligar da internet, tida como uma das novas doenças da atualidade. No entanto, depois de ver atentamente um dos livros que minha filha comprou (Jardim Secreto), fiquei me perguntando que vazio(s) este tipo de "literatura" preenche(m) de fato na vida dos adultos, já que são eles os principais consumidores?

Quando algo vira moda, seja lá o que for, eu sempre me pergunto os motivos, pois me intriga o fato de que, de uma hora para outra, milhões de pessoas passarem a consumir ou pensar da mesma forma. Para mim, especialmente quando se trata de algum produto, há sempre dois polos envolvidos: um do idealizador, que, por alguma razão, enxergou naquele produto uma demanda a ser potencializada; e o outro polo é o consumidor que, também por algum motivo, passa a sentir necessidade daquele produto porque ele o trás prazer e o faz sentir-se feliz. O problema é que, na maioria dos casos, o produto da moda vai ao encontro de vazios existenciais preenchidos por conteúdos empobrecedores, fluidos e, portanto, lastimáveis.

Não estou aqui julgando ninguém em particular e muito menos afirmando que todas as pessoas se encaixam na minha análise, pois sempre procuro pensar nos aspectos mais gerais das questões. No caso dos livros de colorir penso três coisas: primeiro que eles não acrescentam nada na vida dos adultos, não informam nada de novo, não problematizam a vida do leitor, não acrescentam nenhum dado cultural, não apresentam nenhum novo personagem, enfim, de fato, não são livros; segundo, enquanto fenômeno editorial, me parece que se trata de mais uma coisa que contribui para a infantilização da vida adulta, pois pintar, para a imensa maioria das pessoas (tirando os artistas mesmo, os quais, aliás, acho que se recusariam a ficar pintando desenhos), é brincar, é repetir uma brincadeira e não criar algo novo, pois os desenhos estão prontos (parece as comidas prontas de hoje em dia) para serem consumidos, ou melhor, para serem pintados e, além do mais, pintar desenhos prontos é uma atividade própria para as crianças pequenas que estão aprendendo o sentido da lateralidade espacial; e, em terceiro lugar, é um fenômeno de massificação de algo um tanto sem sentido, que padroniza comportamentos e busca combater o vazio da existência com algo igualmente vazio de significado, pois, de fato, ao se trocar a possibilidade de combater a dependência da internet com livros reais (sejam de papel ou eletrônicos) e seus significados culturais, por livros com desenhos prontos para serem pintados, criamos um sério risco de esvaziarmos ainda mais a nossa já combalida humanidade.

Finalmente, os livros para colorir são realmente bonitos. Quem gosta de pintar desenhos prontos, cheios de detalhes, que se deleitem, não os julgo e muito menos os condeno. Mas saibam que fazem parte de uma onda que tende a despersonalizar o ser humano, infantilizar o adulto e tomar uma espécie de placebo contra  o vazio da existência humana, ou seja, remédio que não ataca a causa e, a rigor, nem os efeitos.

PS: com meus agradecimentos ao David pela ideia deste post.




domingo, 15 de março de 2015

Impeachment e reforma política


Faz parte da democracia o povo protestar contra seus governos. Faz parte, é necessário e saudável, especialmente quando a chamada classe política está tão desacreditada como nos últimos anos no Brasil. Um presidente (no caso, uma presidenta), um governador ou um prefeito não podem agir de forma a desconsiderar a opinião das pessoas, as suas críticas e reclamações; agir desconsiderando isto é fazer um governo arrogante que vai errar sempre e não admitir os erros. Portanto, viva a democracia que permite, e exige, manifestações contra os governos, até porque, como disse Winston Churchill: "a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas".

No entanto, as manifestações ocorridas hoje (15/03/2015) me deixaram preocupado. Em primeiro lugar um movimento de tal magnitude, de abrangência nacional, não pode ser acéfalo; há necessidade de líderes, há necessidade de pessoas que, por alguma razão, legítima ou nem tanto, criam os grupos nas redes sociais, criam e/ou organizam os argumentos que embasam o movimento, marcam o dia dos protestos e, especialmente arcam ou negociam quem banca as despesas dos protestos, porque elas existem, a começar pelos carros de som, os quais não são baratos. A pergunta que fica é: quem são esses líderes? O que eles fazem? O que e quem eles representam? Eles têm articulação política partidária? Declararam seus votos nas eleições passadas?

Em segundo lugar, deve-se perguntar qual a base legal para se pedir o impedimento da presidenta Dilma, pois, se não houver, de fato, culpa no cartório por parte dela, como aceitar simplesmente a vontade de uma parcela da população? Até onde sei não há base legal ou qualquer fato comprovado que a ligue com a escandalosa corrupção na Petrobrás, pois se existisse algo de concreto eu seria favorável ao seu impeachment. Assim, me parece que estamos diante de um golpe, talvez arquitetato por um grupo e que agora passa a ter o endosso de uma parcela grande da população brasileira. No entanto, seja um grupo pequeno ou um grupo grande, sejam centenas ou milhões de pessoas a protestar, o que está em risco agora é a própria essência e existência da democracia, a qual tem que ser impessoal e desprovida de sentimentos para continuar firme. Ser democrático não é fácil, ainda mais quando a maioria agiu de forma diferente nas urnas. Democracia, para mim, é uma forma de agir, tanto no público quando no particular e, para isto, o respeito às pessoas, especialmente aquelas que nos servem de alguma forma, é fundamental.

Fotos e imagens dos protestos de hoje mostram outra grande preocupação: o apelo à religião, o combate ao comunismo e a defesa da intervenção militar. Para quem se lembra ou estudou sobre a década de 60 do século passado vai lembrar das "marchas com Deus pela família brasileira contra o comunismo", as quais foram um instrumento valioso para criar um ambiente favorável ao golpe militar de 1964. Instaurou-se um regime autoritário que, entre outra coisas, fechou o Congresso Nacional, proibiu partidos políticos, perseguiu e matou pessoas e proibiu as livre-manifestações. Ora, é isto mesmo o que se está pedindo? A ironia disto tudo é que tais pessoas que levantam estas bandeiras só o fazem porque estamos numa democracia, pois, numa ditadura, no caso, militar novamente, não teríamos a liberdade que temos para nos expressar; duvido até que as redes sociais teriam a liberdade que têm hoje.

Para que os meus leitores não me vejam como alguém que está aqui somente com o intuito de defender a presidenta Dilma eu afirmo que não apoiaria, também, o impeachment do governador do Paraná Beto Richa, pois também não vejo as condições jurídicas necessárias para tal ato, o qual deveria ser o último recurso democrático. Prezo muito a democracia, por isto sou favorável às manifestações contra a condução política de nossos governantes, contra os vários tipos de corrupção, mas, temo que pessoas movidas pelo sentimento de raiva, acabem contribuindo para colocar em risco a democracia que, a muito custo, a muito sangue, foi resgatada em nosso país.

Finalmente, compartilho da opinião de muitas pessoas de que uma das causas da crise política que vivemos é o atual modelo político, que envolve o financiamento privado das campanhas, a reeleição para os cargos executivos e, especialmente, legislativos, a aposentadoria facilitada, os privilégios etc.. Portanto, a manifestação mais eficaz que deveria ser feita, por todos os descontentes com partidos A, B ou C, no Brasil e nos estados, seria para exigir uma reforma política, e que ela não fosse feita pelos políticos, pois duvido que tenham coragem de "cortar a própria carne", mas sim, uma assembléia soberana, composta por representantes da sociedade civil organizada, que impusessem aos políticos uma forma diferenciada de agir. Resguardaríamos a democracia e, quem sabe, forçaríamos os políticos a agir pela ética e pelo compromisso, de fato, com aquilo que é público, compromisso com a res publica!!!!!




domingo, 8 de fevereiro de 2015

Até quando??


Tenho consciência de que não vou acrescentar nada ao que já foi escrito, em forma de desabafo e revolta, por um sem número de professores nos últimos dias. Mas, acho que temos que continuar refletindo, falando, gritando se for o caso...

Até quando nós professores, da educação básica e do ensino superior, seremos espezinhados, atacados em nossos direitos e, em especial, em nossa dignidade??

Até quando ouviremos de nossos políticos em suas campanhas que nós professores temos que ser valorizados, que nossos salários deveriam ser melhores e que as condições de trabalho deveriam melhorar, mas que, depois de eleitos, continuam esquecendo-se das promessas e dos discursos realizados?

Até quando aguentaremos  a consoante desvalorização de nosso trabalho, como se ele fosse de segunda ou terceira categoria para a sociedade?

Até quando os professores da rede pública básica terão que se encher de aula para conseguir ter um salário um pouco mais digno para ter um pouco mais de condições de adquirir mais conforto e tranquilidade que sua desgastaste profissão exige?

Até quando as escolas públicas serão tratadas como espaços precários, que não necessitam de investimentos constantes para reformas e melhorias?

Até quando as nossas universidades estaduais serão atacadas com projetos obscuros que querem retirar delas a capacidade de crescimento para cumprir, de forma mais eficiente, sua vocação pública?

Até quando nós servidores públicos seremos surpreendidos com projetos escandalosos que querem retirar nossos direitos e conquistas históricas?

Até quando as escolas e universidades públicas em nosso estado do Paraná serão tratados como fontes de despesas dos recursos públicos e não como investimentos para uma sociedade melhor?

E, finalmente, até quando professores e demais servidores das escolas e universidades continuarão votando em pessoas que, historicamente, tem compromisso com o desmantelamento das instituições públicas??

Até quando????

Quem sabe a greve geral que se anuncia, talvez primeira greve que não é motivada pela luta por aumento dos salários, mas sim, pela retomada da dignidade profissional de todos, seja um momento que possamos, nós servidores públicos do estado do Paraná, afirmar com todas as letras: BASTA!!!!!


sábado, 24 de janeiro de 2015

Shakespeare

No fim do ano passado terminei meu segundo grande projeto literário: ler todas as peças de William Shakespeare. Nem sei quanto tempo demorei (acho que uns três anos ou mais), pois eu as li a noite, antes de dormir, sem pressa, meio que absorvendo as histórias e me deixando absorver por elas, sem anotar nada, sem fazer resumo, só para deleite mesmo, e, ainda, intercalando com outros livros. Meu primeiro projeto foi a leitura dos romances de Machado de Assis; os próximos são, na ordem, o teatro grego e latino, os romances russos dos séculos XIX e início do XX, os romances de Eça de Queirós e Comédia Humana de Balzac. Para os próximos 10 ou 15 anos pelo menos tenho garantidas ótimas companhias, intercalando com as leituras das trilogias e crônicas que também me prendem a atenção e a alma.

Quanto ao Bardo, sinceramente não se tenho algo a dizer que acrescentaria ou diferenciaria de tudo o que já foi dito e escrito sobre ele; aliás, esta nem é minha pretensão, pois não sou e nem quero ser especialista neste assunto. O que quero, na verdade, é passar, muito rapidamente, minha impressão geral sobre sua obra, mas nem sei ao certo por onde começar... Mas, vamos lá...

O que mais me chamou a atenção é como ele constrói as histórias e os personagens: sempre de forma não-linear, buscando exibir a complexidade que é o ser humano e suas relações. Seus enredos são despidos de maniqueísmos e, portanto, não fiquei esperando um final em que o herói se dê bem e o vilão se dê mau. Aliás, o que menos importa nas histórias é seu final, os quais geralmente são abruptos e até, arriscaria a dizer, um tanto preguiçosos. O mundo shakesperiano é o mundo dos homens reais, com seus amores, paixões, amizades, fidelidades, heroísmos, mas, também, com suas angústias, medos, ciúmes, traições, horrores, angústias, desesperos, vilanias e lutas acirradas e veladas pelo poder. As histórias, sempre complexas, pois complexa é a vida, sempre são, digamos, lógicas, num enredo em que amores e conflitos são levados muitas vezes ao extremo de soluções que espantam o leitor atual acostumado com finais felizes e com a vitória dos heróis sobre os vilões. As peças trágicas não o são porque são histórias que têm finais tristes, mas, sim, porque os enredos são dramáticos e seus finais são meras consequências das tramas. Não há, na peças do Bardo, lugar para deuses ex machina.  Não há como ficar imune às histórias, pois elas revelam o que o humano é e pode fazer; é como se colocássemos um espelho a nossa frente revelando imagens sem máscaras. Eu sempre procuro "dialogar" com as peças, com as histórias e, assim, elas sempre incomodam, desinquietam, mas, revelam o mundo, as vezes tão estranho, dos humanos. Shakespeare me ajuda a compreender a minha sociedade, tão distante cronologicamente dele, mas tão próxima porque as relações pessoais, sociais e políticas continuam complexas, pois formadas pois complexos seres... humanos!!

As peças de Shakespeare são usualmente divididas em Comédias, Tragédias e Dramas Históricos. Gostei de todas as peças, pois todas elas me tocaram de alguma forma a alma. Ri, me espantei, enraiveci, me condoí, enfim, as peças mobilizaram meus sentimentos. Para quem ainda não adentrou o mundo shakesperiano atrevo-me a indicar as peças que mais gostei de acordo com a divisão acima, para o início de um caminho, no mínimo, instigante: das comédias, "Sonho de uma noite de verão", das tragédias, "Macbeth", e dos dramas históricos, "A tragédia do rei Ricardo II".

Termino este atrevido post com uma frase de Machado de Assis sobre Shakespeare, como uma espécie de ligação entre os dois dos maiores homens da literatura mundial e meus dois projetos de leitura: "Um dia, quando já não houver império britânico..., haverá Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare".