terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Um mundo sem espelhos

(microconto levemente inspirado em Dr. Estranho e Stranger Thinks)


Numa dessas dimensões paralelas à nossa, cuja existência recentemente nossos cientistas descobriram e divulgaram, as pessoas não fazem uso e nem conhecem algo que nos é muito comum: o espelho. Como já sabemos, toda realidade paralela é como se fosse a nossa mesma realidade, somente com algumas pequenas mudanças. Um viajante, ainda experimental, descobriu, em uma dessas dimensões, esta sociedade que não usa espelhos. Acompanhemos o seu relato feito para um grupo restrito de cientistas e políticos de importância mundial.

- Quando cheguei a outra dimensão no início não notei diferenças, achei mesmo que a passagem pelo portal não tinha dado certo. Me integrei na sociedade, em uma cidade média. Passeei bastante, entrei nos lugares, conversei com pessoas, comi em lanchonetes e restaurantes e até fiz amizades.
- Você não ficou com medo de passar mal com a comida?
- No começo sim Coronel K. Mas, depois resolvi arriscar, pois a comida é muito parecida com a nossa.
- E fazer amizades, você acha que foi boa ideia? Poderiam te perguntar de onde você era e coisas assim?
- Achei por bem arriscar senhora Presidente G. Eu falei que era de uma cidadezinha pequena e longe de onde eu estava e que estava lá procurando emprego. Aliás, consegui até trabalho também.
- Quanto tempo você ficou lá mesmo?
- Fiquei quase 6 meses senhor Senador J. Como as coisas estavam tranquilas resolvi ficar o máximo de tempo possível para entender bem a vida naquela dimensão.
- E o que mais te chamou a atenção por lá?
- A falta de espelhos senhor Presidente T.. Isto mesmo o que os senhores ouviram, eles não têm espelhos, de nenhum tipo, nem em casa, nem em lojas, nem nos carros, em nada. E é muito interessante relatar este aspecto, pois acho que é algo que pode fazer a gente pensar sobre nós mesmos. Sem espelhos as pessoas são bem menos vaidosas e não existem tantos produtos de maquiagem como aqui.
- Mas, eles não têm a tecnologia para fazer espelhos ou foi opção mesmo?
- Então, senhora R., eu perguntei e ouvi as duas versões. O fato é que eles conseguiram se organizar sem a necessidade de espelhos. E para mim, que tenho este cabelo desgrenhado, foi difícil me adaptar. Nos primeiros dias tinha até vergonha de encontrar pessoas, pois eu não sabia como estava meu cabelo, mas, depois, percebi que as pessoas não ficavam reparando nisso, e mais, tinha várias pessoas que saiam despenteadas também... aliás, eu fiquei pensando que, para eles, o natural do cabelo, seja liso, crespo, desgrenhado, é o natural para eles... Há mais liberdade para se usar roupas também, pois, sem espelhos, não há porque ficar experimentando muitas roupas para sair de casa... As pessoas também não ligam muito para a estética das pessoas, não há, até onde vi, um culto ao corpo perfeito. As academias de fitness existem também, mas, como não há espelhos, os praticantes parecem se preocupar mais com sua condição física mesmo e não em malhar apenas para exibir seus músculos e corpos definidos.
- Eu fico pensando aqui nos carros. Como eles fazem para dirigir sem espelhos? Há muitos acidentes?
- Parece irreal para nós Doutora A., mas quase não vi acidentes. Andei de carro para fazer a experiência e, confesso, nas primeiras vezes fiquei muito apreensivo. Depois, eu até dirigi um carro. Os motoristas prestam muito mais atenção no trânsito e respeitam muito as setas dos outros carros. Se um carro liga a seta os outros imediatamente dão passagem, sem haver, como isso, xingamentos, palavrões etc.
- E a falta de espelhos acarreta outras diferenças com a nossa sociedade?
- Na minha opinião, Doutor X., acarreta sim várias diferenças. A sociedade daquela dimensão parece não ser tão consumista como a nossa; as pessoas se respeitam mais; as diferenças, de cor, sexo, gênero, são tidas como naturais. Eu acho que o fato de não existir espelhos faz com que as pessoas se vejam mais e se ajudem, pois, a única maneira de melhorar um pouco a imagem é pedindo ajuda para outra pessoa.
- Mas, do jeito que você fala, esta dimensão não tem problemas?
- Tem muitos problemas sim, Senadora H.. Problemas, aliás, parecidos com os nossos. Mas, no geral, eu percebi que alguns dos nossos problemas, ou melhor, as bases de alguns dos nossos problemas eles realmente não os têm. Insisto, me desculpem, na ausência dos espelhos. De certa forma, as pessoas parecem que são mais livres, ou menos presas a aparências e modelos de beleza. Acho que, neste aspecto pelo menos, aquela sociedade é mais livre do que a nossa. Mas, é claro, para ter certeza dessas coisas eu precisaria voltar para lá e ficar mais um tempo.

O nosso viajante de dimensões não voltou para aquela dimensão, pois foi destacado para conhecer outra dimensão diferente. Por enquanto, ainda não temos mais notícias daquela sociedade que, por incrível que pareça, conseguia viver sem espelhos!!

domingo, 15 de janeiro de 2017

Carência - o inimigo íntimo



A carência é a porta de entrada do nosso inimigo mais íntimo. 



Há algum tempo elaborei esta frase, mas confesso que pode não ser de minha autoria, pois costumo recolher frases por aí em livros, filmes, séries, conversas, palestras etc. Em todo caso, acho que ela sintetiza algo que, na minha opinião, é uma marca de boa parte dos relacionamentos na atualidade. Tenho como costume, acho mesmo que por obrigação da minha profissão (professor), pensar sempre sobre as mudanças que vêm acontecendo ultimamente, tanto as boas como as mais complicadas. É meu jeito de tentar entender as pessoas ao meu redor e, é claro, também me entender.

A carência da qual falo aqui é a mais profunda, é aquela que nos faz sentir como se fôssemos incompletos, como se tivéssemos que, necessariamente, completar o vazio com algo ou alguém. Pode ser chamada de carência afetiva ou carência emocional, mas acho que é mais profunda, é quase que uma carência anímica, uma carência de alma, de personalidade. Ela, a carência, tem a ver, necessariamente, com a baixa auto-estima. Enfim, me parece que, ultimamente, as pessoas estão tendo sérios problemas com sua auto-estima e, portanto, encontram-se muito carentes. Costumo brincar que todos somos carentes, uns mais e outros mais ainda...

Mas, até aí, talvez isto não fosse um problema, afinal, temos várias carências: econômicas, sociais, políticas, de saúde, enfim, somos seres carentes. No entanto, a carência a que me refiro aqui é aquela coisa (coisa, porque é difícil encontrar uma outra palavra que sintetize o seu significado) sem a qual nos sentimos menos e, portanto, infelizes. Esta é a chave para o que chamo de porta de entrada do inimigo íntimo. Quando estamos (ou somos) carentes geralmente a nossa auto-estima está muito baixa e ficamos menos exigentes, até porque, não somos exigentes nem conosco mesmos; a falta de exigência nos torna frágeis e, sem critério de seletividade, somos presas fáceis de coisas e, especialmente, de pessoas que entram na nossa vida para nos dominar, nos escravizar, nos assediar. A carência, preenchida desta forma, nos torna reféns e, mais, nos torna dependentes do que supostamente cobriu nosso vazio. Como o amor-próprio é quase ausente, dirigimos nosso amor para o outro, como se a ausência do outro nos levasse de volta para o lugar de onde saímos, como se a ausência do outro abrisse novamente um vazio imenso que não suportamos ter e existir. Assim, a fragilidade e a dependência abrem nossa vida para quem nos domina e faz questão de nos dominar, nos induzindo a acreditar que tais atos são atos de amor, de carinho e de cuidado. O ciúme do outro, que é normalmente tão carente quanto nós, junta-se ao ciúme que desenvolvemos, pois a relação de dominação/dependência assume uma aura de uma relação amorosa. Ledo engano!! A carência permitiu que o inimigo mais íntimo, pois supostamente um ser amoroso, seja levado para nossa vida mais íntima. Arrisco a afirmar que todo aquele que faz do ciúme uma atitude corriqueira, que faz o outro acreditar (porque ele próprio acredita) que o ciúme é prova de amor, no fundo é um dominador, é um inimigo do outro, mesmo que seja chamado de namorada(o), esposa(o), companheira(o).

O que fazer para não permitir a entrada do inimigo íntimo, inimigo que é capaz de matar o ser "amado" (como tanto está acontecendo ultimamente)? A resposta, claro, está bem longe de ser tranquila... a resposta pode estar em algo tão simples quanto complexo, que é procurar conhecer-se a si próprio; e, reconhecendo as próprias fragilidades, estar mais atento para o que causa, no fundo, o vazio, e, por consequência, criar critérios mais dignos para novos relacionamentos, que deveriam ser baseados na liberdade e não da dependência.


terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Fullmetal Alchemist - uma longa parábola sobre amizade


A Sofia, minha filha, me apresentou mais um anime. Depois de Death Note, agora foi a vez de Fullmetal Alchemist. Trata-se de um anime com 64 episódios espalhados por 5 temporadas. Os personagens principais são dois irmãos (Edward Elric e Alphonse Elric) , jovens, que se tornam alquimistas federais, como poderes especiais de transformar matérias, no caso deles o ferro, em armas poderosas para lutar contra inúmeros inimigos pessoais e do país. A história se passa numa fictícia cidade chamada Amestris, que lembra muito uma parte do nosso Oriente no início do século XX. Ah, aviso que o que segue contém alguns spoilers.

O anime mistura incríveis enredos de tensão, coisas inusitadas, mocinhos, vilões e diversão. Apesar de seu conteúdo ser um tanto forte, pois a história é densa, a história acaba se tornando leve pela forma como os personagens principais são tratados. Os homúnculos criados para substituir os humanos dão a principal dramaticidade à história, pois a luta acaba sendo entre os simples humanos e seres com poderes sobre-humanos. Mas, não é sobre isto que quero falar aqui, mas sobre o que esta grande metáfora pode significar, ou, mais propriamente, o que ela significou para nós, eu e Sofia.

O tema do anime é a amizade. Amizade entre irmãos, entre parentes e entre companheiros. Os dois irmãos, especialmente, se tornam grandes cúmplices na busca da pedra filosofal que restauraria as partes de seus corpos (no caso de Alphonse, o corpo inteiro) que foram levados porque eles tentaram, via alquimia, trazer à vida sua mãe. Na busca pela tal pedra muitos riscos correram e tiveram que mostrar sua valentia, coragem e, especialmente, sua dedicação. Ao final das cinco temporadas somos surpreendidos com o fato de que ambos os irmãos tiveram que sacrificar aquilo que lhes era mais caro, seus poderes de alquimistas, para recuperam o que haviam perdido. A renúncia a toda glória e fama que lhes rendeu a alquimia foi feita com base na cumplicidade dos dois irmãos, foi feita pela amizade entre eles.

Foi, de fato, muito tocante o final do anime. A sensação de que a amizade entre eles era o mais importante foi comovente. Acho mesmo que em nossos dias conseguimos encontrar quem troca fama, glória, dominação, ciúme etc. pela verdadeira amizade. Deixar nossos interesses de lado para que quem amamos esteja completo novamente é algo sempre desejado e, me parece, infelizmente tão raro que temo que seja excessão à regra. Por isso é sempre bom se deparar, mesmo que seja no terreno da ficção em um anime, com algo que inspire verdadeiras amizades!!!