segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O sonho da morte

(experimento literário baseado livremente em Stephen King)


- O que estou fazendo aqui? Onde estou indo? Por que estou dirigindo? 
Ele demorou um pouco para saber onde estava, mas acabou por se localizar. Estava em uma rua que conhecia bem. Mas não conseguiu se lembrar como foi parar ali. Ficou num misto de espanto e desespero, pois, realmente, não se lembrava de ter saído de casa, de ter pego o carro e, pior, nem fazia idéia para onde estava indo e o que iria fazer. Pelo menos, sabia onde estava e isso, de certa forma, o acalmou.
- Já ouvi, ou li em algum lugar, que isso pode acontecer às pessoas, pensava ele. Algumas pessoas, continuava pensando, têm um branco e esquecem a razão pela qual estavam em algum lugar. Pelo que me lembro, isso é passageiro. Vou tentar me manter calmo.
Reconheceu o lugar onde estava e se lembrou que fazia aquele caminho sempre que ia encontrar amigos num bar que ficava naquela região.
- É isso, concluiu. Vai ver que eu estava indo encontrar meus amigos no bar de sempre. Tem poucos carros na rua e hoje deve ser sábado, justamente o dia em que nos encontramos. Vou para lá.
No caminho para o bar se passava em frente ao cemitério e em frente do cemitério ficava uma dessas capelas mortuárias. Ao passar por ali, começou a perceber que havia grande movimentação na capela e, para espanto dele, as pessoas que ele viu eram todas conhecidas: amigos, parentes, colegas de trabalho, inclusive parentes distantes que ele há tempos não via.
- Meu Deus, será que morreu alguém conhecido?? É isso!! Alguém muito próximo a mim morreu e isto me causou um trauma, um tipo de bloqueio da realidade, por isso não consigo lembrar nada e por isso, também, eu estava perto do cemitério. 
Estacionou o carro e foi rápido para a capela para saber quem tão próximo estava sendo velado. Estava tão concentrado que nem deu bola para as pessoas que também lá estavam. Chegando ao caixão descobriu que, na verdade, era ele mesmo que estava sendo velado...
- O que? Eu morri? Eu estou morto? Como assim? Quando? Como isto aconteceu?
Em meio a tantas perguntas sem respostas, passou a notar as pessoas que lá estavam: amigos, parentes próximos, parentes distantes, colegas de trabalho, todos estavam lá para o seu velório. Foi então que percebeu que ninguém o notara ali, ninguém... somente ele sabia que estava vendo seu próprio velório.
- É um sonho. Só pode ser um daqueles sonhos tão realistas que acordamos, depois, perturbados. Já tivera vários desses sonhos e esse, com certeza (!) seria mais um... É só esperar, dizia consigo, pois quando lembrou de alguns sonhos perturbadores lembrou, também, que no pico da angústia, o sonho acabava. Mas, que estranho, dialogava consigo mesmo, esse sonho já era para ter terminado.
E o sonho não acabou. Não conseguiu acordar. Sonho ou realidade?? Morto, de fato, ou vivo, sonhando? O fato é que não acordou...


sábado, 14 de setembro de 2013

A menina que perdeu a voz

(microconto livremente inspirado em Nelson Rodrigues e em Saramandaia)


Ela sempre fora um menina tímida. Daquelas que, como dizem, entrava muda e saía calada dos lugares. Em casa passava mais tempo brincando com suas bonecas, com seus jogos, com seu computador e assistindo desenhos animados na televisão, do que conversando com seus pais. Quando recebia visita de seus tios ou de seus avós, ou ainda, dos amigos dos seus pais, ela conversava pouco, respondia às perguntas e logo voltava para sua rotina. Seus pais chegaram a se preocupar que ela fosse autista, mas os médicos concluíram que ela, na verdade, era somente tímida mesmo. 
Na escola não era diferente. Tinha poucos amigos, apenas duas colegas que faziam trabalhos em equipe e brincavam no recreio. Em sala de aula raramente fazia pergunta ou algum comentário sobre as matérias. Fazia leitura quando era-lhe solicitado pela professora, e lia muito bem, sem gaguejar e quase sem errar. Apesar (ou por causa) de sua timidez, ela era uma aluna acima da média, sempre tirando boas notas e nunca reprovando de ano. Tirando a quietude dela, com a qual sua família, seus colegas e suas professoras se acostumaram, ela era um menina perfeitamente normal.
Ela cresceu assim e os anos passaram-se assim... Quando tinha mais ou menos dezesseis anos ela entrou no mundo das redes sociais, aliás, ela se tornou uma fera em computador, entrando em vários sites e acessando vários tipos de programas. No facebook nem parecia a mesma pessoa tímida e quieta que era, acabou se tornando uma verdadeira facemaníaca. Tinha mais de dois mil amigos, com os quais, a maioria deles pelo menos, tinha uma vida virtual social super agitada. Vivia postando coisas interessantes, como fotos, reportagens, mensagens. Sempre comentava as postagens dos seus amigos, compartilhando muitas delas. Enfim, no face era uma pessoa supersociável, daquelas que acabaram por se tornar referência para muitos amigos. Certa vez resolveu criar um blog, que se tornou sucesso entre seus amigos. Postava pensamentos, tentativas de poesia, análises de acontecimentos locais e nacionais. Quem não a conhecia pessoalmente, o que era o caso da imensa maioria dos seus amigos no face, julgava que aquela menina era extremamente agitada, falante, cheia de amigos, popular, enfim, sociável.
Certa vez, quando já havia entrado na faculdade, ela passou três semanas em casa sozinha, período de férias escolares em que, coincidentemente, seus pais tiveram que viajar por algum problema de saúde de uma de suas avós. Ficou em casa todos os dias. Ficou o tempo todo no computador e, na maior parte do tempo, no facebook. Passou horas a fio conectada. No dia anterior da sua volta às aulas, que era o dia da chegada de seus pais, a menina acordou e não conseguia mais falar. Quando seus pais chegaram ela não conseguiu pronunciar nenhuma palavra; elas, as palavras, simplesmente não saíram de sua boca. Assustada ela e assustados os pais, foram ao médico e, para surpresa de todos, não havia explicação clínica para o fato. Nos dias seguintes fez vários exames e, para, agora, desespero de todos, nenhum indicou qualquer problema nas cordas vocais da menina. O tempo passou e ela continuou sem poder falar e, apesar das sessões de fonoaudiologia, de terapia e de outras tentativas, todos em casa passaram a conviver com aquele mistério.
Mas, o mais intrigante desse caso é que, a menina, depois do período de susto e desespero, passou a se sentir bem com o fato de não poder falar. Passou a se sentir mais livre, pois agora não precisava mais se esforçar, como fazia na grande maioria das vezes, para conversar com as pessoas. E, continuou a ser um celebridade na internet...


domingo, 8 de setembro de 2013

O líder e o chefe - parte 3 (última): nos relacionamentos pessoais


Estive ausente no meu blog por vários dias. O motivo foi que me dediquei a participar da criação o blog do LEIP (Laboratório de Estudos do Império Português), grupo de estudos e pesquisas que temos na UEM. Alias, aproveito para divulgar o endereço do blog: http://leip-uem.blogspot.com.br. Agora, retomo a reflexão que vinha fazendo acerca da diferença entre o líder e o chefe, pensando, por fim, nas relações pessoais.


Nos outros posts conclui que a principal diferença entre o modo chefe e o modo líder de ser na gestão e na sala de aula basicamente se refere à questão da liberdade e da autonomia. O líder procura criar um clima de liberdade e promover a autonomia daqueles que fazem parte de sua área de atuação; já o chefe cria ou instiga um ambiente de subordinação e quer que os outros lhe sejam subservientes. O líder tem desapego e o chefe tem medo de perder seu poder.

Penso que nas relações pessoais ocorre, metaforicamente, a mesma coisa. O amigo ou namorado do tipo chefe quase nunca permite que o outro tenha vida própria, tenha idéia próprias ou gosto próprio. Em nome do amor que é dedicado, este tipo não admite que o outro não lhe retribua o sentimento com a mesma intensidade. Também não admite que o outro possa ter amigos com os quais possa compartilhar a vida. O amigo/namorado chefe quer, no íntimo, que o outro passe a viver em sua função. O  sentimento característico nessa relação é o ciúme, capaz de, em certos casos, ser o motivador de uma dependência psíquica do outro, passando a se sentir como se seu dono fosse. O namorado/amigo chefe sempre acha que o outro pode traí-lo e, com isso, vive num clima de perene desconfiança e medo e, portanto, é um ser que sofre, especialmente com fantasmas criados em sua mente.

O amigo/namorado líder, por seu turno, procura se relacionar com o outro de forma igual, respeitando nele a sua personalidade, suas idéias e seus gostos. Este tipo preserva a individualidade do outro, assim como preza a sua própria, não cobrando do outro nada além do que o outro pode lhe dar. A confiança é inerente à relação para o tipo líder e, portanto, não há lugar para ciúmes doentios, pois a relação não consistirá em criar um laço de dependência recíproca. Este tipo de namorado/amigo não traveste como amor a necessidade de controlar o outro, pois amor é, fundamentalmente, liberdade. Amor, dedicação, carinho, afeto, para este tipo de relação são sentimentos que não devem gerar sofrimento e, portanto, o medo não existe e nem fantasmas são criados. A autonomia buscada na relação baseia-se na autonomia das individualidades, se os dois crescem juntos, a relação cresce igualmente.

Como eu acredito que o ser humano é social, apesar de ter certas características naturais da personalidade, o aprendizado é inerente ao seu desenvolvimento. Ser líder e deixar de ser chefe é difícil, é uma luta contra si mesmo; mas, se assim não fizermos, os outros serão, sempre, pretexto para a nosso eterno desejo de dominação...