terça-feira, 27 de novembro de 2018

A pressão do PAS sobre nossos estudantes


Se não me engano, o Processo de Avaliação Seriada (PAS) da Universidade Estadual de Maringá (UEM) foi criado em 2008 ou 2009. Eu era, à época, pró-reitor de graduação da UEM quando as discussões tiveram início com a gestão da reitoria de 2006/2010. A ideia, em princípio, me parecia interessante e dei meu apoio, pois vislumbrava-se baixar a pressão do vestibular e estender o processo de entrada na universidade ao longo dos três anos do ensino médio, em que os candidatos não escolheriam o curso de início e, depois, com a soma da pontuação das provas iriam escolher, caso tivessem sucesso na seleção, o curso que iriam fazer. Enfim, a ideia era suavizar o disputado processo de ingressar na UEM. No entanto, com o passar do tempo, o que se verifica, na minha opinião, é que o PAS/UEM resultou num efeito exatamente o contrário: ele é responsável hoje pelo aumento exponencial da pressão sobre os estudantes do ensino médio.

Só fui me dar conta do efeito contrário do PAS/UEM quando minha filha, a Sofia, entrou para o ensino médio neste ano. Aliás, tem coisas na vida que só nos damos conta de verdade, só vemos seus reais efeitos, quando nos envolvemos diretamente. Hoje, alunos do ensino médio têm, na prática, pelo menos três vestibulares ao invés de um. Quem, não sendo professor e nem aluno diretamente interessados, já teve a curiosidade de ler a prova do PAS para ter a noção do que se cobra e da forma como se cobra (questões somatórias), verá que o que se exige é um conteúdo para além do que o estudante médio, normal, está acostumado. O nível de complexidade da prova da primeira fase (que corresponde ao primeiro ano do ensino médio) desse vestibular chamado, eufemisticamente, de processo de avaliação seriada, é muito alto, exigindo, dos alunos, uma dedicação que está muito além do comparecimento deles em sala de aula e do estudo para as provas regulares. Portanto, o nível de pressão aumenta muito pelos resultados que se espera.

Duas outras coisas que acontecem como repercussão do PAS e que aumenta a pressão sobre os alunos: a expectativa dos pais e a competição entre as escolas. Sobre o primeiro aspecto não há novidade, a não ser o fato de que a pressão resultante da expectativa dos pais para a entrada de seus filhos em cursos concorridos, como, por exemplo, medicina, arquitetura e direito,  no mínimo triplica, e os alunos que têm esse tipo de "motivação" passam a se exigir muito, muito mais... Sobre os colégios, especialmente entre os particulares, criou-se cursinhos preparatórios para o PAS, as provas das disciplinas, em grande parte, já são aplicadas com o formato somatório e, especialmente, dirige-se as disciplinas para o vestibular seriado. Como estamos numa sociedade capitalista, em que a educação também é uma mercadoria (aliás, valiosa!!), a competição entre os colégios começa pelo marketing de quantos alunos seus foram aprovados pelo PAS/UEM, o que, na prática, aumenta o valor da mercadoria que o colégio vende. Os colégios fazem este tipo de propaganda justamente porque acreditam (e devem estar certos!) que os pais matriculam os filhos naqueles colégios que conseguem mais aprovar seus alunos nos exames de ingresso para as universidades. Ou seja, na prática, tudo no colégio passa girar em torno do PAS, que aliado, ou decorrente, da expectativa dos pais, aumenta, como escrevi acima, de forma exponencial a pressão sobre nossos jovens. Os colégios públicos, por não terem necessidade de concorrer no mercado educacional, não têm cursinhos preparatórios, mas, com certeza, seus alunos já sentem também a pressão desde o primeiro ano do ensino médio.

As estatísticas mostram que, infelizmente, nossos jovens estão atentando contra a vida de forma alarmante. A pressão que eles têm na vida, pressão de várias origens, faz com que muitos se sintam incapazes de responder e ficam doentes. O período da vida que vai dos 14 aos 17 anos nunca foi fácil, pois é um período de crises, de amadurecimento e de, aos poucos, decidir o que vai fazer em sua vida de adulto. Mas, por outro lado, sempre foi um período de descobertas, do lúdico, de uma certa tranquilidade na vida para aqueles que não tinham que ir para o mercado de trabalho precocemente. O ensino médio que deveria, na minha opinião, focar na aprendizagem útil para a vida concreta de nossos alunos, fazer com que eles se interessassem, por si só, pelos conteúdos das disciplinas com liberdade e fossem amadurecendo aquilo que a gente chama de "vocação", agora insere-os num ambiente de pressão precoce.

Confesso que me me culpo de não ter pensado à poca em que discutíamos o PAS na UEM nas consequências que hoje, na nossa sociedade capitalista e competitiva, me parecem óbvias. Quem sabe eu poderia ter interferido ou problematizado mais a inciativa, Aquilo que eu achava que aliviaria a pressão sobre os alunos só fez aumentá-la. E, neste mundo com cada vez mais motivos para adoecer, os nossos jovens não deveriam ter mais um mecanismo, que se torna quase cruel, de pressão.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Eu votaria no Bolsonaro se...






Eu votaria no Bolsonaro se:






- eu achasse que o Brasil precisa de um Salvador da Pátria para resolver os seus problemas;
- eu não concordasse com um Estado laico em que a religião deve ser prática individual ou coletiva em igrejas e não um projeto político para um país;
- eu achasse que para o bem público, num regime democrático e republicano, deve-se colocar Deus acima de tudo e de todos;
- eu acreditasse que existe uma única concepção de Deus; pois, como há várias e diferentes "versões" de Deus, quem adquire poder são aqueles que se julgam o intérprete do Deus verdadeiro. Ou seja, num Estado Laico, que deve respeitar a diversidade religiosa em seu território e não deve censurar nenhuma religião, colocar Deus acima de tudo e de todos pode acarretar uma sociedade baseada em uma única interpretação de quem é Deus e do que ele quer de nós;
- eu não concordasse com uma sociedade plural, em que a crítica faz parte do cotidiano de nossas vidas;
- eu acreditasse que para ser presidente bastam bravatas e basta incitar o medo da população para com o seu concorrente direto;
- eu acreditasse que não é necessário expor concretamente quais as propostas que se tem para solucionar os problemas do Brasil;
- eu aceitasse que uma campanha no rádio e televisão deveria ser feita apenas nas críticas ao adversário; afinal, é preciso saber quais as propostas para acabar com a violência, para aumentar o número de empregos, para retomar a economia, para melhorar a educação e a saúde pública, para resolver o problema da dívida pública, da previdência etc.;
- eu acreditasse que apenas a qualidade da honestidade fosse suficiente para o cargo público de maior poder e responsabilidade do Brasil, pois, se assim o fosse, não precisaríamos de eleição, mas de um concurso público para descobrir a pessoa mais honesta do Brasil;
- eu acreditasse que fosse normal uma pessoa que passou 27 anos de sua vida em cargo público de relevância no Brasil não ter apresentado nada de relevante e nunca ter querido passar pela experiência de um cargo executivo, para o qual, aliás, está  se candidatando;
- eu considerasse que não é necessário participar de debates com o adversário para expor para a nação  as propostas e mostrar porque sua candidatura é melhor que a outra; o debate faz parte da essência da democracia, ainda mais quando se está num segundo turno em que restam apenas dois dos candidatos;
- eu acreditasse que o período militar de 1964 a 1985 trouxe realmente estabilidade para o Brasil, que naquele período não houve corrupção e que as pessoas tinham liberdade para se organizar e criticar o governo;
- eu achasse que a corrupção no Brasil é uma prática de dois ou três partidos e não algo praticamente endêmico na política brasileira; partidos pequenos, como o PLS em eleições anteriores, foram "alugados" por partidos grandes, recebendo dinheiro para servir de "aríetes políticos"; aliás, Bolsonaro foi filiado a 9 partidos, a maioria deles sem nenhuma relevância ou expressão política para o Brasil;
- partilhasse dos preconceitos de gênero, raça e sexo;
- acreditasse que a família tradicional brasileira não está cheia de hipocrisia, de submissão da mulher, de dupla jornada de trabalho da mulher e de homens que vão à igreja em um dia e ao puteiro no outro;
- enfim, eu não quisesse que minha filha vivesse num país com liberdade, com respeito, com valorização das diferenças e com esperança num futuro melhor.

No entanto, quero aqui deixar claro que meu voto em Haddad, neste momento, é porque vejo nele alguém que vai, pelo menos, andar pelos caminhos da democracia e do republicanismo e, com ele, não corremos o risco da instalação de um conservadorismo moral persecutório no Brasil. Como diz um amigo meu, prefiro votar alguém que pode, futuramente, ser acusado de ladrão, porque se assim o fizer podemos prendê-lo, do que votar em alguém que pode, futuramente, tornar-se um ditador, pois aí é ele que pode me prender simplesmente pelo fato de eu criticá-lo.
Mas, com toda a sinceridade, não gostaria de estar entre essas duas opções, por isso votei no Ciro no primeiro turno. O PT ainda deve ao Brasil um reconhecimento de que a corrupção atuou em parte do seu esquema partidário. O PT deve parar de endeusar o Lula como, também, uma espécie de salvador da pátria. O PT deve, a meu ver, deixar uma arrogância de que é a melhor opção de esquerda e de governo e deve dialogar, em pé de igualdade, com todas as forças republicanas neste nosso país.
Torço pela vitória de Haddad, mas torço também que ele possa fazer, de fato, um expurgo no PT e que ele seja cabeça de um projeto de governo e não de um projeto de poder.



quarta-feira, 3 de outubro de 2018

E se as eleições de hoje fossem há 100 anos atrás?


Estes dias estão sendo de muita reflexão sobre a atual conjuntura política brasileira. Procuro entender a quantidade expressiva de votos que o candidato Bolsonaro deverá ter no próximo dia 07 de outubro. Procuro entender as motivações de pessoas esclarecidas, estudadas, em optar por um salvador da pátria como o próximo presidente do Brasil.

Creio que há duas grandes frentes  de votos para ele (que podem ser subdivididas em outras, mas não vou fazer este exercício aqui) a primeira, mais fiel, de uma parcela declaradamente conservada em termos morais, que vêem em Bolsonaro, por ser abertamente contra a ideologia de gênero, ser abertamente homofóbico e machista, um defensor dos valores supostamente perdidos da família brasileira. O conservadorismo existe e sempre existiu na história da humanidade, pois diante de novidades das gerações mais novas, a geração anterior normalmente atribui a isto um desvio perigoso do desejado  comportamento humano, especialmente dos mais jovens; além disso, a religião sempre é usada como justificativa para que não haja mudanças que coloquem em xeque aquilo que, segundo os lideres das igrejas, Deus quer de nós.  Outra parcela reune em sua grande maioria o movimento antipetista, com um discurso contra a corrupção. No entanto, este segundo grupo é composto, também, pelas pessoas que se deludiriam com a política e que, diante de um vazio gerado pela ausência da polarização PSDB x PT, optam por um candidato supostamente novo e, também, supostamente não atrelado à corrupção política brasileira. Diante deste quadro, no entanto,  estou fazendo, por esses dias, um exercício mental-imaginativo-fantasioso que talvez contribua para pensarmos, efetivamente, o que seria um possível governo do Bolsonaro no Brasil: imaginemos  se as eleições deste ano fossem há 100 anos atrás e se o Bolsonaro fosse candidato?

No início do século XX o Brasil vivia um momento de entrada na era republicana e muitos líderes advogavam a necessidade de formar um cidadão que contribuísse para que o Brasil se desenvolvesse e se tornasse social, econômica e politicamente tão grande quanto o seu território. Nesse movimento tivemos importantes avanços sociais que repercutem até hoje. Avanços que foram conseguidos mediante muita luta e, especialmente, em lideranças políticas que assumiram bandeiras sociais importantes e colocaram parte de seus mandatos a serviço do enfrentamento do conservadorismo. Vejamos, hipoteticamente (mas, sem sombra de dúvida, bastante real), naquele quadro social, uma plataforma política do candidato Bolsonaro do passado:

- pelo restabelecimento da escravidão no Brasil, pois os negros, sendo uma raça inferior, não têm como arranjar empregos decentes e só vão fazer aumentar a pobreza e a violência no Brasil;
- pela manutenção do voto para aqueles que possuem propriedades, pois as pessoas comuns, destituídas de boa educação, não podem influenciar no futuro do país;
- pela manutenção dos votos somente para homens, pois o lugar das mulheres, por sua constituição física, é o lar, cuidando dos seus filhos e maridos, e, por isso, elas não tem maturidade racional para exercer o seríssimo direito ao voto;
- pela redução das áreas destinadas aos índios, pois eles não precisam de grandes áreas para viver, pois, além de preguiçosos, eles são indolentes e as áreas destinadas a eles devem ser repassadas para os nossos capitalistas agrários para produzirem os alimentos para os brasileiros;
- pela tipicação  do homossexualismo como crime contra a humanidade e a religião, pois subverte, demoníacamente, a sagrada família brasileira, pois Deus, em sua infinita sabedoria, criou o homem e a mulher somente. Os crimes de homossexualismo devem ser punidos com a prisão e a castração química e, na reincidência, com a morte;
- pena de morte para todos os criminosos, independente se forem simples ladrões ou assassinos. Os policiais estarão liberados para primeiro atirar e depois perguntar;
- pelo retorno imediato do Brasil cristão, devendo ser proibida qualquer religião que contrarie os dogmas da Santa Madre Igreja.

O que nos parece hoje este tipo de plataforma política? Horrível, atrasada, perniciosa, criminosa?? Sim, tudo isto e muito mais... mas, atualizando o discurso do Bolsonaro e sua plataforma política hoje, não seria a mesma coisa?? O Brasil se tornou democrata e republicano enfrentando os discursos acima, pois sempre teve gente (as vezes menos, as vezes mais) que defenderam todos aqueles pontos e outros mais, numa atitude conservadora e reacionária diante do que acreditavam ser pernicioso para a família, para a religião e para o país. Imagine se "ele" tivessem vencido? Mulheres, negros, índios, homossexuais, democracia, espírito republicano, liberdade religiosa... todos os avanços não teriam acontecido...

E agora a pergunta fatal: o que será se o Bolsonaro ganhar agora??

PS: sou a favor de qualquer opinião sobre qualquer coisa; acho que a democracia pressupõe que a ninguém deva ser cercado seu direito a expressar-se. Portanto, não tenho nenhum problema com as opinões conservadoras, pois o conservadorismo sempre fez e sempre fará parte da sociedade; meu problema é quando o conservadorismo se torna projeto político que coloca em risco os avanços sociais que foram conseguidos a duras penas...


domingo, 23 de setembro de 2018

O coiso... ele...


Alguns amigos e algumas amigas podem discordar do que segue aqui, mas sei que como tais, amigos e amigas, me conhecem para saber as minhas motivações e minha visão de mundo. Desde o ano passado tenho conversado com algumas pessoas sobre as eleições presidenciais que se aproximam, e disse para todos que eu não tinha um candidato definido, nem à época e nem agora, mas que tinha apenas uma campanha a fazer: contra o Bolsonaro. E é sobre o atual clima das eleições presidenciais que me motivo a escrever aqui: me causa estranhamento ver em postagens de amigos e amigas, especialmente no facebook, referências ao Bolsonaro como "coiso", "ele", negando-se a pronunciar o nome do candidato. Mesmo sabendo que o facebook possa usar os algoritmos que acabam por evidenciar o nome dele, ainda assim me causa estranhamento.

Me perguntava porque isto me incomoda? Depois de pensar um pouco me veio que não querer sequer pronunciar o nome dele parece quase como uma atitude religiosa, parecido com o costume antigo(?) de não pronunciar o nome do demônio para que os maus agouros não o trouxesse, ou mesmo, o medo de pronunciar o nome do diabo (ou belzebu, ou lúcifer, ou tinhoso...), pelo fato de que o simples fato de falar tal nome já despertasse na entidade um desejo de "conhecer" a pessoa que, de certa forma, o invocou. Me lembro quando criança, adolescente e, mesmo na juventude, pessoas não pronunciarem o nome da doença câncer, falavam "aquela doença ruim", porque não queriam, não sei exatamente porque, assustar as pessoas, mas desconfio que era a mesma lógica de não pronunciar a palavra demônio, para que se afugentasse o mal da pessoa que estava falando.

Pelo clima maniqueísta criado há algum tempo na política brasileira, potencializado pelas redes sociais, a luta pela verdade ganhou quase que contornos religiosos. Pessoas de um grupo chamando as pessoas de outro grupo de corruptos, comunistas, petralhas, coxinhas, conservadores, hipócritas etc. Os dois grupos se xingam mutuamente, um defendendo que está quase como "ungido" da verdade e que, por consequência, o outro está afundado na mentira. O caminho para a salvação passa pelos candidatos que  os grupos defendem, também quase que de forma religiosa, como carismáticos salvadores da pátria. Eu acho que se recusar a chamar pelo nome o candidato que se está atacando reverbera em uma ação política que pode estar pautada numa militância quase que religiosa. O Brasil não precisa, para seu amadurecimento político, de salvadores da pátria, e sim de pessoas comprometidas com uma visão de conjunto dos problemas reais brasileiros e que sejam capazes de apontar, com seriedade, com sobriedade e com realismo, as possíveis saídas para a crise. A solução dos problemas não depende de simplismos e promessas mágicas, pois a crise em que o Brasil se encontra é muito mais profunda do que podemos imaginar.

Estamos em um momento muito sério no Brasil, em que temos que pensar e participar da política de forma sóbria, ponderada e (infelizmente) pragmática. Assim, o meu candidato nunca vai ser o Bolsonaro porque ele representa, na minha visão, exatamente o que eu não quero para o futuro do Brasil: violência, misoginia, racismo, homofobia, arrogância do colonizador, a economia nas mãos de técnicos sem a ponderação das políticas públicas e, especialmente, bravatas de quem está há quase três décadas na política e não fez absolutamente nada para mudar, ou seja, eu não quero o oportunismo político como critério de escolha para nossos governantes.  Alguém que prega a superioridade racial, a de gênero, a de pessoas armadas, não pode ser a minha escolha. Alguém que pode colocar em risco a democracia com seu discurso de violência e de exaltação à ditadura militar no Brasil, não pode ser meu candidato. Alguém que pode, em um eventual governo, criar milícias a paisana no Brasil para controlar e cercear a liberdades garantidas constitucionalmente para todos, não pode ser meu candidato. Alguém que pode colocar em risco a estabilidade social, política e econômica que tanto o Brasil precisa nos próximos anos não pode ser minha escolha.

Faço campanha, sim, contra o Jair Messias Bolsonaro!! Porque tenho convicção de que com ele, como presidente, o Brasil piorará sensivelmente em seus padrões republicanos, democráticos e civilizatórios. Todas as suas bravatas serão desmascaradas, porque a conquista da liberdade humana é irreversível, com todas as suas dores e delícias. A duras penas o Brasil se tornou um país oficialmente laico, em que a liberdade religiosa é garantida; corrermos o risco de, em nome de uma religião, retrocedermos na história é, com toda a certeza, abrir a possibilidade concreta de reativarmos os tribunais da inquisição... por isso que a apologia à violência é uma marca do Bolsonaro...

sábado, 9 de junho de 2018

Bons Casmurros - um convite à leitura


Há pouco mais de sete meses faço parte de um grupo de leitura intitulado Bons Casmurros. Sob a liderança do Victor Simião, este grupo se reune a cada três semanas no Café Literário, perto da UEM, para debater vários tipos de livros, desde clássicos até os mais modernos romances, ficções, poesias, teatros, biografias, e até histórias em quadrinhos. Cerca de trinta pessoas gravitam em torno do grupo, variando a idade de 15 a 60 anos, mas umas quinze pessoas efetivamente participam. Eu estava com vontade de fazer parte dos Bons Casmurros há uns dois anos, mas só tive a oportunidade concreta de fazê-lo no final do ano passado (obrigado à Maria!!). Agora, além de ser mais um participante, estou tendo o prazer de fazer novas amizades e reaver outras antigas.

Quero refletir aqui sobre o que significa fazer parte de um projeto com tais características, mais do que ficar fazendo uma descrição das suas atividades. Todas as discussões que fiz parte até agora foram ricas, foram profundas e se  tornaram, especialmente, momentos de aprendizagem de minha parte. É muito interessante ver como cada pessoa lê o mesmo livro; como cada indivíduo faz a sua apreciação e as suas críticas; como cada ser ali presente submerge na história e, depois, emerge diferente, tocado pelo enredo e pelos personagens. A literatura tem dessas coisas: é uma subjetividade que escreve e que dialoga com cada subjetividade que lê. Alguém já disse que o que escrevemos deixa de nos pertencer e passa a fazer parte da vida daqueles que nos leem e nos interpretam. Concordo!! Se nos escritos acadêmicos isto acontece, na literatura é uma realidade plena e contundente. Afinal, o que seria de Shakespeare, Cervantes, Dante, Machado de Assis, Dostoiévski, Balzac, se não fossem seus leitores?? O que seria de Shirley Jackson, John Green, Misha Glenny, Helena Ferrante, Hilda Hilst, Luiz Rufatto, se não fossem as pessoas que os leram e comentaram com outras pessoas que seus livros eram muito bons? Eu jamais leria autores modernos se não fosse por este grupo, pois minha formação e gosto pessoal sempre me levaram em direção aos clássicos. Mas, a experiência de ler autores atuais tem sido gratificante. Já li livros que não gostei muito, outros que simplesmente gostei e outros que gostei mais...

Mas, talvez a característica mais gratificante do grupo e que eu quero destacar aqui é que todas as discussões até agora têm um alto nível de crítica. Crítica no sentido de que as pessoas dialogam de verdade com os autores, porque dialogam com a vida. Crítica no sentido de avaliar com recursos pessoais de profundidade e não apenas repercutir o que os outros pensam. A visão crítica para com os livros se estende, naturalmente, para uma visão crítica com relação à sociedade de forma geral, com suas instituições, suas ideologias e suas idiossincrasias. Eu que sou do mundo acadêmico partilhei  por um tempo de um preconceito que faz parte deste mundo: a criticidade se faz dentro dos muros da universidade. Ledo engano!! O espírito crítico se forja, especialmente mas não de forma exclusiva,  na leitura de bons livros, que trazem histórias que dialogam com a vida do leitor, que o faz sair de seu mundinho umbilical e o faz levantar a cabeça e buscar ser uma individualidade neste mundo tão ausente delas. Individualidade é diferente de individualismo e de coletivismo; é um meio-termo em que o indivíduo se fortalece, toma consciência de que ele é social, mas que também deve forjar a sua forma de pensar o mundo, sem se deixar levar por interesses mesquinhos e nem ser como gado em curral sendo levado de um lado ao outro por "tocadores de mentes".

Em um mundo como o nosso, em um tempo como o nosso, em que muitas coisas estão acontecendo rapidamente e ao mesmo tempo; em que vivemos as "dores do parto" de algo novo; estarmos atentos criticamente para não sermos meros reprodutores de ideias e ideais é uma necessidade de sobrevivência. Ler é uma ótima e poderosa vacina que nos imuniza ou, o que também é salutar, nos deixa mais "malucos beleza" num mundo que não pode ser levado tão a sério!! Ler é preciso; ler bons livros é fundamental!! E o Bons Casmurros está aí para contribuir!!

Obrigado a todas as pessoas que integram o grupo e que me permitem crescer cada vez que nos encontramos! É muito bom estar com vocês, seja no Café Literário ou nos bares da vida! Termino aqui pois tenho que adiantar a leitura de O Conto da Aia, de Margaret Atwood, nosso próximo livro...



quarta-feira, 11 de abril de 2018

Merlí - e os peripatéticos



Ficar muito tempo sem publicar algo aqui me gerou dúvidas quanto a sobre o que escrever. Pensei em rascunhar alguma coisa sobre a atual situação que rola no Brasil, em termos políticos, mas ficará para outra oportunidade. Hoje vou aproveitar que terminei mais uma série da Netflix para sobre ela escrever: Merlí. Uma série catalã basicamente centrada em um professor de Filosofia do Ensino Médio de uma escola pública que dá o nome à série.

Merlí é uma série que tem três temporadas, as duas primeiras com treze episódios cada uma e a terceira, e última, com quatorze episódios. É uma série que foge do padrão "hollywoodiano", como House of Cards, Homeland, Breaking Bad, ou mesmo Game of Thronos. Ela é produzida pela TV3 da Catalunha, e tem atores pouco conhecidos, como o protagonista  Francesc Orella, que fez inúmeros filmes, programas de TV e peças de teatro, mas que pouco chegam até nós. Aliás, é uma inciativa muito bacana da Netflix que compra e disponibiliza séries fora do circuito comercial, como,  em outro exemplo, Rita , uma série dinamarquesa também sobre uma professora de escola pública.

Talvez diferentemente de outras pessoas que assistiram a série penso que a sua grande virtude é construir uma trama complexa com personagens igualmente complexos. É verdade que o mote é um professor de Filosofia que, numa didática diferente do convencional, consegue fazer com que seus alunos (os seus peripatéticos, como ele chama a turma, em clara referência a Aristóteles) passem a ser questionadores do atual estado social, cultural, religioso, econômico e político. A Filosofia se torna, como sempre deverá ser, instrumento para tornar as pessoas críticas, com o passeio que o professor Merlí Bergeron faz de seus alunos com Platão, Aristóteles, Agostinho, Plotinho, Marx, Hegel, Nietzsche, Smith, Sartre, Zizek, Baumann, dentre outros. Eu, como sou formado em Filosofia e trabalho as disciplinas Fundamentos Filosóficos da Educação na Antiguidade e Medievalidade no curso de graduação em Pedagogia, posso atestar que a forma como os filósofos são apresentados faz jus aos seus pensamentos. E, mais, o planejamento de Merlí, um tanto anárquico, não apresenta os filósofos em uma ordem cronológica, ele os introduz de acordo com o tema que quer trabalhar; assim, de Platão ele vai a Maquiavel, depois a Baumann, volta para Epicuro, avança para Heidegger, volta a Socrátes... de uma forma muito bem elaborada e com um sentido lógico. Mas, o mais interessante é que, independente do filósofo,  o professor sempre faz a relação do seu pensamento com as questões da atualidade, pois, dessa forma, os alunos conseguem dialogar com diferentes filosofias e, essencialmente, dialogar com eles mesmos.

Merlí é um personagem humano, pois ele não é idealizado como senhor das virtudes, pois apresenta vários defeitos, pelos quais, inclusive, as vezes paga preço alto. Seus alunos vivem, cada um, vidas complicadas, com várias experiências e famílias que dão um toque por vezes dramático ao enredo. Foi muito bonito e emocionante acompanhar a vida deles e de como cada um, a sua maneira, foi tentando resolver seus problemas. Questões próprias da nossa sociedade no que diz respeito à juventude são tratadas de forma aberta, como drogas, sexo, homossexualismo, racismo, mãe solteira, suicídio, morte etc.. A escola pública, bem como os problemas das pessoas que dela dependem, também são mostrados de forma bem realista, apresentando que, num mundo dominado pelo capital, dominado pelos interesses políticos de grupos que têm projetos de poder e não de governo, quem sofre são os despossuídos e as instituições que do governo dependem, e isto em um país de primeiro mundo.

Enfim, recomendo esta série a todos aqueles que querem passar várias e várias horas assistindo um enredo cheio de nuances, que foge ao maniqueísmo, com personagens fortes, com histórias pessoais que se entrelaçam em outras histórias e que nos faz rir, ficar com raiva, torcer e chorar. O último episódio é particularmente emocionante, mas não vou aqui dar spoiler.

"Me llamo Merlí... y quiero que la filosofía os haga 'trempar' (se excitar)"