domingo, 19 de maio de 2013

Lição indiana


Estou lendo um livrinho sobre a Mitologia Indiana, de uma coleção de outras mitologias, tema pelo qual, como alguns sabem, sou apaixonado. Há uma parte no livro em que são relatadas algumas lendas, geralmente lições com fundo moral em que estão presentes sábios hindus. Dentre as várias histórias interessantes, uma me chamou muito a atenção, a qual passo a relatar de forma resumida.


Dois jovens amigos moravam em duas cidades, separadas por um rio muito largo. Um dia eles se encontraram no meio do rio cada um em uma canoa. Um deles convidou outro para uma festa na casa de um rico senhor, em que haveria dança, teatro, dançarinas, cortesãs e muita comida e bebida, uma festa, digamos, mundana. O outro, coincidentemente, convidou o amigo para outra festa, essa numa igreja, em que haveria a fala de um famoso sábio, corais de fora, orações e celebrações. Nenhum dos dois aceitou o convite do outro porque já estavam comprometidos com suas festas. Ao amanhecer o dia os dois novamente se encontraram no meio do rio voltando de suas respectivas festas quando um tempestade se formou e afundou os dois barcos ocasionando a morte dos dois amigos. Quando estavam esperando o destino final de suas almas, os anjos do céu vieram buscar o que foi para a festa mundana e os anjos do inferno vieram buscar o outro. Depois do espanto inicial e dos dois tentarem argumentar que os anjos estavam errados, um dos anjos explicou que aquele que foi para a festa na igreja ficou com o coração na festa em que o outro amigo estava, desejoso de estar curtindo tudo o que o amigo havia relatado que haveria; por outro lado, o outro amigo, apesar de estar numa festa cheia de prazeres carnais, queria estar na festa do amigo. Ou seja, eles estavam, na sua essência, onde o coração queria estar, e a justiça divina se fez.

Penso que esta história pode ser aplicada em várias situações de nossa vida. A primeira é que nem sempre, ou na maioria das vezes, conhecemos o próprio coração, nem sempre nos conhecemos o suficiente para separar o que aparentamos ser do que realmente somos. Segundo, não adianta representarmos papeis, praticarmos caridade, nos considerarmos religiosos, se o nosso pensamento e nosso desejo estão em outros lugares. Terceiro, estamos, na essência, onde nossos desejos estão e não, necessariamente, onde nos encontramos fisicamente, por mais que tentemos nos enganar juntando vários argumentos para justificar que o lugar físico (ou sentimental) é o lugar do coração. A quarta situação é aquela em que somos flagrados em nossa hipocrisia, ou seja, nos fazemos de amigos, de críticos, de sensíveis às demandas da atualidade, mas somos egoístas, insensíveis e queremos dominar o outro para colocá-lo a nosso serviço. Por fim, podemos pensar, também, nas situações em que aquilo que gostamos ou somos levados a curtir, na verdade são produzidos fora de nós, são incutidos em nossos comportamentos e, sem nenhum senso crítico, passamos a reproduzir.

Para além da moral francamente religiosa que a história indiana tem, penso que ela pode nos ensinar a trilharmos o difícil caminho de entender a nós mesmos e, fazendo um link com o mundo grego (do qual a mitologia é igualmente apaixonante), resgatarmos o ideal socrático do conhecer-se a si próprio!!!


4 comentários:

  1. Célio,simplesmente perfeito.As pessoas estão, em sua maioria, perdendo sua essência, sua centralidade e o conhecimento de si mesmas. O pior é que não percebem como são, na verdade, moldados por uma indústria cultural. Segue um excerto de um texto que uma ex-aluna postou em seu face, o que me incomodou acerca de como anda um ambiente que não frequento, mas que já supunha estar organizado conforme o que segue : " [...] Primeiramente, você chega na balada e observa que metade das mulheres estão com um vestido de elástico, já a outra metade está com uma regata branca ou top e por cima uma blusa fina, junto com uma saia alta ou short customizado.
    Usando o insistente perfume 212, Angel e Light Blue. Mas até aí tudo bem pois o uniforme faz parte. Não muito distante disso você vê alguns homens com uma camisa polo com “número 43” nas costas e um cavalo gigante no peito, perfume one million e a barriga saliente, com as mulheres mais bonitas da festa. Alguns gastando dinheiro que não tem, outros gastando por gastar e outros como eu agora, pensando em como funciona tudo isso… Nesse instante por algum motivo você se sente diferente daquelas pessoas. Culturalmente instruídos a sempre segurar um copo na mão seguimos o nosso caminho em busca de algo que no fundo não sabemos se realmente faz sentido [...]De forma alguma estou dizendo que não gosto de balada, ou que balada é algo de pessoas “vazias”, mas infelizmente na maioria das vezes é isso que eu vejo, mulheres que só querem levantar seu ego e homens que acham que baixar um litro de bebida lhe faz ser o macho "top" da festa.
    Cada vez mais as pessoas têm a necessidade de mostrar ser uma coisa que não são, e principalmente terem seu ego exaltado.
    Agora só falta elas perceberem que isso não leva a lugar nenhum.

    Chegamos num ponto chave da sociedade, onde máscaras valem mais do que expressões, garrafas de bebida em cima da mesa valem mais do que apertos de mão e companhias falsas valem mais do que uma conversa sincera com a menina menos atraente da festa".
    sem mais...Meire Calegari

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  2. Fez-me refletir e lembrar-me da passagem das Escrituras Sagrada: "Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o poderá conhecer?
    Eu, o Senhor, esquadrinho a mente, eu provo o coração; e isso para dar a cada um segundo os seus caminhos e segundo o fruto das suas ações.
    Jeremias 17:9-10

    beijos...

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  3. Célio, sua colocação de certa forma, nos remete ao momento histórico que vivemos. Buscamos prazeres individuais para suprir algo que nos falta mas que não conseguimos saber o que é.... Hoje em dia tudo é em prol do ter, do poder, do imediatismo. Não se cultiva mais um bom amigo, e se houver um auxílio a alguém não se faz apenas pelo dever moral, mas sim, pelo dever social, o que é bem diferente....
    Mas te digo uma coisa, lutamos fervorosamente contra isso...ainda que sem nos darmos conta...
    Hoje uma colega de trabalho teve um mal súbito, com muita falta de ar e engasgada por não respirar. Nesse momento senti um desespero misturado com impotência....diante do desejo de aliviar seu sofrimento....daí percebi o quanto estamos conectados aos que nos rodeiam.
    Então te falo: já nos conhecemos.... e bem sabemos quem somos. Falta apenas coragem de olhar ao redor e aceitar que não fazemos parte do mundo, mas o mundo sim, faz parte de nós. e também, precisamos entender que reproduzir comportamentos não é comodismo, é apenas uma forma de sentir que somos todos iguais....
    Abraços.....

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