sábado, 14 de setembro de 2013

A menina que perdeu a voz

(microconto livremente inspirado em Nelson Rodrigues e em Saramandaia)


Ela sempre fora um menina tímida. Daquelas que, como dizem, entrava muda e saía calada dos lugares. Em casa passava mais tempo brincando com suas bonecas, com seus jogos, com seu computador e assistindo desenhos animados na televisão, do que conversando com seus pais. Quando recebia visita de seus tios ou de seus avós, ou ainda, dos amigos dos seus pais, ela conversava pouco, respondia às perguntas e logo voltava para sua rotina. Seus pais chegaram a se preocupar que ela fosse autista, mas os médicos concluíram que ela, na verdade, era somente tímida mesmo. 
Na escola não era diferente. Tinha poucos amigos, apenas duas colegas que faziam trabalhos em equipe e brincavam no recreio. Em sala de aula raramente fazia pergunta ou algum comentário sobre as matérias. Fazia leitura quando era-lhe solicitado pela professora, e lia muito bem, sem gaguejar e quase sem errar. Apesar (ou por causa) de sua timidez, ela era uma aluna acima da média, sempre tirando boas notas e nunca reprovando de ano. Tirando a quietude dela, com a qual sua família, seus colegas e suas professoras se acostumaram, ela era um menina perfeitamente normal.
Ela cresceu assim e os anos passaram-se assim... Quando tinha mais ou menos dezesseis anos ela entrou no mundo das redes sociais, aliás, ela se tornou uma fera em computador, entrando em vários sites e acessando vários tipos de programas. No facebook nem parecia a mesma pessoa tímida e quieta que era, acabou se tornando uma verdadeira facemaníaca. Tinha mais de dois mil amigos, com os quais, a maioria deles pelo menos, tinha uma vida virtual social super agitada. Vivia postando coisas interessantes, como fotos, reportagens, mensagens. Sempre comentava as postagens dos seus amigos, compartilhando muitas delas. Enfim, no face era uma pessoa supersociável, daquelas que acabaram por se tornar referência para muitos amigos. Certa vez resolveu criar um blog, que se tornou sucesso entre seus amigos. Postava pensamentos, tentativas de poesia, análises de acontecimentos locais e nacionais. Quem não a conhecia pessoalmente, o que era o caso da imensa maioria dos seus amigos no face, julgava que aquela menina era extremamente agitada, falante, cheia de amigos, popular, enfim, sociável.
Certa vez, quando já havia entrado na faculdade, ela passou três semanas em casa sozinha, período de férias escolares em que, coincidentemente, seus pais tiveram que viajar por algum problema de saúde de uma de suas avós. Ficou em casa todos os dias. Ficou o tempo todo no computador e, na maior parte do tempo, no facebook. Passou horas a fio conectada. No dia anterior da sua volta às aulas, que era o dia da chegada de seus pais, a menina acordou e não conseguia mais falar. Quando seus pais chegaram ela não conseguiu pronunciar nenhuma palavra; elas, as palavras, simplesmente não saíram de sua boca. Assustada ela e assustados os pais, foram ao médico e, para surpresa de todos, não havia explicação clínica para o fato. Nos dias seguintes fez vários exames e, para, agora, desespero de todos, nenhum indicou qualquer problema nas cordas vocais da menina. O tempo passou e ela continuou sem poder falar e, apesar das sessões de fonoaudiologia, de terapia e de outras tentativas, todos em casa passaram a conviver com aquele mistério.
Mas, o mais intrigante desse caso é que, a menina, depois do período de susto e desespero, passou a se sentir bem com o fato de não poder falar. Passou a se sentir mais livre, pois agora não precisava mais se esforçar, como fazia na grande maioria das vezes, para conversar com as pessoas. E, continuou a ser um celebridade na internet...


Um comentário:

  1. Provocante o texto, professor!

    A internet democratiza o direito à expressão, amplia as possibilidades para além dos modelos convencionais de comunicação.

    Eu era muito parecida com ela na infância por sinal... rsrs

    Abraço.
    Ligiane

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