sábado, 23 de maio de 2015

Sobre a fluidez da existência humana - a história do homem que virou lesma.

(microconto livremente, e pretensamente, inspirado em Kafka)


A vida lhe parecia cada vez absurda de ser vivida. O vazio das relações, a busca frenética por prazer e felicidade em cuja roda frequentava, causava-lhe cada vez mais desilusão, e o futuro incerto e cada vez mais sem sentido fizeram-no entrar num estado de torpor, de solidão, mesmo tendo a companhia de um sem número de pessoas, de tal forma que ele, lentamente, se transformou em uma lesma. Isto mesmo, quando se deu conta estava gosmento, rastejando pelo chão de sua casa. Mas, como era uma lesma de tamanho considerável, como nunca antes se tivera notícia, conseguia, além de rastejar no chão, subir no sofá de sua sala e em sua cama. Na verdade, demorou um pouco para ele se perceber lesma. Uns dois dias depois da brutal e surpreendente transformação é que ele se olhou no espelho e se viu assim: uma horrorosa lesma!!!

O impacto que ele teve foi profundo. Ficou atordoado e sem saber o que fazer. Tentou ligar para alguém no seu celular ou entrar na internet para fazer alguma pesquisa se existia caso semelhante que teria sido documentado, mas se deu conta que não tinha mais mãos, braços, ou mesmo pernas e pés. Ele finalmente tinha se dado conta de que tinha se transformado numa lesma nojenta. Seus amigos ligavam para ele para combinar uma saída em algum boteco mas ele não conseguia atender o celular, o qual, depois de um tempo se calou porque acabou a bateria. Os amigos acharam que ele tinha viajado sem falar para ninguém e os poucos que tentaram ir ao seu apartamento ficaram no interfone, pois ninguém atendia; claro, como uma lesma iria apertar o botão do interfone? Além do que, logo logo, ele se percebeu também sem voz.  Seus amigos pensavam que não tinha acontecido nada de mau com ele, pois, como diz o adágio popular, "notícia ruim corre depressa...". Mas, nem correr ele podia agora, pois alguém já viu uma lesma correndo??

Com o tempo ele começou a se habituar com sua situação, especialmente depois que passou a ter a companhia de outras lesmas, estas originais, de tamanho original, muito menores que ele portanto, mas que, não se sabe direito como, se pelo fato dele ser uma lesma também, eles podiam conversar entre si. As outras lesmas, as autênticas, não metamorfoseadas, viram nele uma espécie de um deus-lesma, pelo tamanho obviamente, mas como ele não estava acostumado com o mundo delas, foi instruído em como deveria proceder para continuar vivendo. "Se afaste do sal, ele é mortal para nós", alertaram-no, e, também, descobriu porque a iluminação forte o incomodava. Soube, também, pelas suas novas amigas, que o tempo médio de vida de uma lesma é de 3 anos, mas que, concluíram depois de muito confabular, que ele deveria durar muito mais dado ao seu tamanho. Enfim, passou a viver com suas amigas lesmas e trocaram informações sobre os mundos diferentes de onde tinham vindo.

Certo dia, porém, as coisas mudaram. Depois de muito pensar sobre sua existência quando humano, de suas relações amorosas, de amizade e familiares, depois de muito refletir, já que agora o tempo lhe sobrava para isto e as conversas com as outras lesmas nem sempre eram frutíferas, sobre temas como felicidade, prazer, amor, profissão, paz, e sobre o que considerava os vícios e as virtudes humanas, concluiu que sua existência como humano, por mais sem sentido que lhe parecia, estava ligada à existência das outras pessoas, mesmo aquelas que não lhe eram próximas. Passou a ter uma percepção de que ele dependia dos outros e os outros dependiam dele, e que isto ocorria com todos e, portanto, se sentiu novamente pertencendo à humanidade. Se esforçou para entender que parte, talvez uma boa parte, de suas neuras, seus cansaços, seus vazios, suas indecisões, seus medos e seus fantasmas não eram seus somente, mas pertenciam à sua época. Ele os sentia como sendo seus, e assim era, mas passou a senti-los como sociais também, além de individuais. "O ser humano é muito complexo!!", concluiu ele. Também concluiu que parte das frustrações que ele tinha quando era humano devia-se ao fato de que ele não conseguia se enxergar como uma espécie de pessoa coletiva, pessoa sim, com toda a sua individualidade, mas coletivo também, pois não estava imune ao que ele tentava responder como espécie de imperativos sociais. Concluiu que o caminho, inseguro e arriscado é certo, seria, no caso de um ser humano (que ele não era mais), fazer um esforço de retirar de sua frente tudo o que o atrapalhava de se enxergar de fato, até que restasse, apenas (e este apenas com muitas aspas) ele próprio, para, a partir daí, repensar sua vida, seus limites e suas ambições e, quem sabe, achar um espaço que ele poderia chamar de felicidade.

Enfim, como eu ia contando, depois de pensar sobre tudo isto algo lhe aconteceu: um dia ele acordou como humano novamente. Também demorou a se perceber como humano, não se dando conta que estava com mãos, braços, pernas e pés novamente; depois de uns três dias mais ou menos ele, se arrastando em frente ao espelho, se viu como ser humano e se flagrou numa posição absolutamente constrangedora, mas agora, pelo menos, sem deixar rastros gosmentos por onde passava. Voltou à sua vida, reencontrou seus amigos e familiares, mas não teve coragem de contar nada para nenhum deles, apenas para uma amiga que tinha ficado muda sem explicação biológica nenhuma. Tem sempre lembranças de quando era lesma e das coisas que fazia, especialmente das suas amigas lesmas, as quais, quando ele se tornou humano novamente, não titubeou em nelas jogar sal...


PS: obrigado à Fabi, pois de uma conversa com ela saiu a ideia do post.


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